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Sinopse

Durante décadas, o viajante suíço René Gardi (1909-2000) tentou explicar o continente africano e seus habitantes por meio de livros, programas de televisão e filmes, em uma visão poética sobre os belos "selvagens" e a era pré-moderna em que eles aparentemente viviam. Esse mundo supostamente idílico, porém, tornou-se paradoxal.

Crítica

Este documentário poderia ser interpretado como uma espécie de mea culpa: o diretor suíço Mischa Hedinger se debruça sobre a maneira como o seu país contribuiu para criar uma imagem estereotipada e racista dos africanos durante o período colonial. Especificamente, ele se consagra ao trabalho de René Gardi, antropólogo extremamente influente, e defensor da tese que os africanos, “se bem educados, podem se tornar bons motoristas, mas nunca vão compreender tarefas complexas”. O Espelho Africano decide se confrontar, em pleno 2019, a um discurso escancaradamente ofensivo que foi, no entanto, julgado apropriado e dominante poucas décadas atrás.

Isso ocorre porque Gardi representava, para intelectualidade da época, a imagem do homem culto, defensor da cultura africana. O cineasta tem o cuidado de dissecar o discurso supostamente bem-intencionado dos homens do século XX, segundo os quais o fato de forçar os africanos a vestirem roupas, a aceitarem o cristianismo e a pagarem impostos constituía um esforço para convertê-los à civilização. A narração em off gravada pelo próprio Gardi interpreta o raciocínio retrógrado enquanto fruto de altruísmo desses missionários que abandonaram o conforto de suas casas europeias para ensinar pobres famílias africanas a se comportarem “como seres humanos”, nas palavras de uma repórter suíça. Confrontado à possibilidade de os camaroneses serem felizes exatamente como viviam, o antropólogo considera impossível se contentar com aquela vida de miséria. Não se pode interpretar o sorriso dos homens negros como felicidade, insiste. “É preciso ler as entrelinhas”.

O documentário parte do princípio que as imagens são claras por si próprias, e que a distância do discurso colonialista com o século XXI carrega, em si, toda a denúncia desejada. De fato, não há dúvida sobre o olhar de condenação de Hedinger às falas e materiais gravados – incluindo ficções antiéticas em que os cidadãos locais interpretavam homens grosseiramente primitivos para o prazer das câmeras. Por isso, o cineasta evita comparar as gravações de Gardi com aquelas de outros pesquisadores, evita colocar letreiros, fazer entrevistas, ou mesmo visitar atualmente os locais retratados pelo antropólogo décadas atrás. Este constitui essencialmente um trabalho de montagem, no qual o resgate documental (os materiais de arquivo são inéditos, como nos lembra uma explicação inicial) pretende carregar valor em si próprio, em paralelo com aparições de Gardi na televisão, defendendo o seu ponto de vista de superioridade em relação aos homens chamados, então, de “pretos”.

Por mais que o material constitua excelente fonte de reflexão, talvez O Espelho Africano seja limitado pela ausência de atrito entre estas imagens e outras, criadas pelo cineasta ou encontradas por ele. Diferentes formas de confronto eram possíveis para além do discurso de Gardi consigo mesmo, ou do tempo passado com o tempo presente. O documentário efetua louvável constatação e julgamento, atacando as nuances do imaginário do africano “livre” porque selvagem e sem leis, hiper sexualizado devido à nudez, servil pela maneira como acolhe os turistas. No entanto, evita uma aproximação entre racismo colonial e racismo contemporâneo, ou então entre a imagem dos africanos feitas por europeus e as imagens que eles viriam a fazer de si mesmos – o filme inclusive faz menção ao desejo dos camaroneses poderosos em produzirem suas imagens de propaganda.

O aspecto mais interessante do projeto se encontra na montagem, capaz de combinar captações silenciosas em 16mm com descrições sonoras que se encaixam muito bem neste contexto, como se os europeus comentassem seu próprio preconceito, sublinhando o olhar carregado de julgamento moral e estético – vide a quantidade de imagens desfocadas, porque não interessava a Gardi a expressão facial exata daqueles homens, contanto que representassem o arquétipo do africano negro. “Você diz o que todos nós pensamos, e não podemos falar. Mas tome cuidado para não ser visto como um imperialista retrógrado”, dizia uma das cartas de apoio ao pesquisador, enviada por um político. Havia a consciência de uma atitude inaceitável socialmente, porém guiada por uma forte base ideológica.

Nestes aspectos, quando as opiniões de Gardi invadem a mídia, as decisões políticas e os discursos religiosos, O Espelho Africano adquire uma amplitude excepcional para a pequeneza de suas imagens de arquivo e sua tela, próxima do formato quadrado. Falta, entretanto, ao filme que denuncia a objetificação, dar voz aos africanos objetificados. Neste jogo de espelhos, o trabalho do antropólogo suíço poderia se apropriar do material enquanto exemplo de um pensamento de superioridade branco, masculino e europeu que perdura em pleno 2019. Ao menos, visto pelo trabalho de pesquisa e edição, o resultado se revela eficaz tanto nos discursos quanto nos silêncios. Nos momentos em que Gardi se cala, seja para admirar a suposta beleza exótica dos africanos, ou para se felicitar de suas ideias, o filme encontra um potente veículo para a imagem enquanto ferramenta política. O maior trunfo desta empreitada, afinal, consiste em utilizar as imagens do racista contra ele mesmo.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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