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Sinopse

Sergio é convidado a interpretar um espião chileno. Seu empregador é um detetive particular infiltrado num asilo onde um dos internos supostamente sofre maus tratos. Porém, Sergio não é exatamente um sujeito habilidoso.

Crítica

Agente Duplo (El Agente Topo, 2020) traz uma premissa que seria considerada absurda mesmo para as ficções. Caso fosse roteirizada em Hollywood, provavelmente se tornaria uma comédia escrachada. Uma agência de detetives chilena busca algum senhor idoso, entre 80 e 90 anos de idade, para se tornar um agente infiltrado numa casa de repouso, onde se suspeita que os moradores sofram maus-tratos. Acompanha-se o “teste de elenco” até Sergio Chamy ganhar o papel. O espião precisa aprender a usar câmeras escondidas em óculos e canetas, além de efetuar chamadas de áudio e vídeo diárias ao chefe, enviando relatórios minuciosos sobre as condições de vida no local. O filme constitui o documentário sobre uma ficção, ou melhor, o documento sobre uma mentira. Ele se assemelha ao teor de um making of, como se oferecesse os bastidores da real produção. O curioso dispositivo representa o verdadeiro foco de interesse da diretora Maite Alberdi: a adequação do idoso à busca e sua inserção dentro do asilo enquanto falso morador. A tal agência que o contrata soa suspeita, e a possível contratante (a filha de uma mulher idosa) jamais dá as caras. A premissa aparenta falsa como um todo, algo que parece agradar à direção.

Afinal, o humor nasce desta indefinição entre o plano levado a sério e o comportamento amador do espião (ele invade o quarto das pessoas, faz perguntas inquisidoras aos enfermeiros). O documentário nunca se importa de fato com a saúde da mulher potencialmente destratada, muito menos com o impacto psicológico desta imersão em Chamy. Qual seria a responsabilidade ética do cinema ao colocar um homem de mais de 80 anos de idade dentro de um asilo, presenciando a solidão, a doença e mesmo a morte, apenas para registrar um dispositivo fictício? Em determinados momentos, o engenhoso mecanismo criado pela equipe – eles chegam antes ao abrigo, fingindo efetuar um documentário “tradicional” sobre o local – se sobrepõe à humanidade retratada. Como nas comédias de ação hollywoodianas, a tensão proposta ao espectador se encontra menos na pergunta “Existe realmente maus-tratos no lugar?” do que em “Será que eles vão ser pegos agindo de maneira tão descarada?”. Parte da comicidade provém da pressuposição de inadequação: somos convidados a rir porque não imaginamos que um homem de mais de 80 anos deveria estar trabalhando, fazendo investigações, usando microcâmeras. Há um aspecto depreciativo neste olhar carregado de julgamentos.

Chamy não se torna o único espião da trama: Alberdi, fingindo um interesse na instituição, porém agindo secretamente para desmascará-la, também opera enquanto agente dupla. “Você não teria problemas em filmar as pessoas do asilo sem elas saberem, certo?”, pergunta o contratante aos possíveis espiões durante a entrevista inicial. Ora, o cuidado em expor as fraquezas, as doenças e a solidão dos personagens, que sequer conhecem o real destino de suas imagens, deveria constituir uma preocupação central do documentário. Apesar dos questionamentos morais evidentes, Agente Duplo fascina enquanto exercício metalinguístico. Quantos documentários se dão ao luxo de produzirem a própria realidade que desejam filmar? Em meio a tantos documentários reféns de seus temas, outros conseguem estabelecer certa autonomia para imprimir um posicionamento próprio. A cineasta vai muito além: ela registra ações enquanto acontecem, ao invés de se referir às mesmas no passado, e passa a interferir no ambiente filmado. O protagonista logo se torna adorado dentro da casa, despertando a paixão de uma moradora, sendo o único amigo de outra, e conquistando o posto de “rei do baile” durante uma festa. Tanto Chamy quanto as senhoras que o cercam (numa proporção de nove mulheres para cada homem) se tornam marionetes dentro de uma farsa, assumida como tal perante o espectador, porém pouco transparente em relação aos personagens coadjuvantes.

Seria exagerado acusar o projeto de insensibilidade: ele apenas não prioriza a dor dos outros, colocando seu jogo de cena em primeiro lugar. Há cenas comoventes de Chamy ajudando uma senhora com Alzheimer a recordar os membros de sua família, ou conversando com outra moradora cujos familiares jamais a visitaram. A produção possui recursos suficientes para se situar em mais de um lugar ao mesmo tempo, instaurando uma montagem paralela quando o espião envia seu relatório e o contratante reage imediatamente. No instante em que os personagens passeiam de carro pela cidade, a câmera está presente no carro em frente. Há atenção às pétalas de uma rosa caindo num riacho, aos cochilos dos senhores entediados num banco à tarde. Em outra palavra, há poesia das imagens e compaixão com a situação desoladora daquelas pessoas abandonadas. No entanto, o mote inicial dos detetives soa como pretexto para gerar conflito. O aspecto tragicômico deste teatro incomoda por converter os idosos no alvo de estudo voyeurista, sendo destituídos de voz e ponto de vista. Eles são flagrados, observados à distância sem saberem disso. Mesmo Chamy interessa à montagem apenas em sua função profissional (as averiguações, os relatórios) ao invés de sua experiência enquanto homem idoso confrontado pela primeira vez à casa de repouso.

Mesmo assim, não será de se espantar que o documentário encontre forte eco com o público, arrebatando diversos prêmios do júri nos festivais por onde passar. Afinal, para quem espera do documentário uma abordagem mais fria, mesmo escolar ou informativa, encontra-se um projeto incrivelmente conectado aos sentimentos. Há trechos claramente concebidos para provocar risos, e muitos outros destinados às lágrimas. A conclusão é sóbria e minimalista, condizente com um pequeno conto agridoce. Por fim, a direção observa com interesse esse mundo curioso dos velhinhos tristes, entre pequenas amizades e um tédio cotidiano, agarrando-se desesperados a alguma forma de afeto – mesmo fortemente suspeito, como seria o caso de Chamy. No entanto, o projeto teria sido muito mais enriquecedor caso realmente privilegiasse o ponto de vista dos moradores. Quem diria que o documentário de fachada filmado por Alberti (o suposto filme sobre o asilo, que serve de disfarce para a investigação) teria uma abordagem muito menos rocambolesca, e também mais sincera, em relação aos personagens desta comédia involuntária. Caminha-se pela linha tênue entre denúncia social, paternalismo e condescendência.

Filme visto online no 25º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, em setembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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