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Crítica


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Sinopse

Mort vai ao Festival de Cinema de San Sebastián para acompanhar Sue, sua esposa, que trabalha como assessora de imprensa de um jovem e promissor cineasta. Enquanto desconfia que ela pode estar lhe traindo, Mort se encanta por uma médica e começa a vivenciar na cidade paradisíaca momentos que são puramente cinematográficos.

Crítica

O cineasta norte-americano Woody Allen é mesmo um romântico-nostálgico incorrigível. Em O Festival do Amor seu protagonista é outro hipocondríaco, ranzinza e neurótico às voltas com inquietações existenciais. Mort (Wallace Shawn) acompanha a esposa, Sue (Gina Gershon), no Festival de Cinema de San Sebastian, na Espanha. Ele é um escritor frustrado e ex-professor de cinema especializado nos clássicos. Já ela é uma agente publicitária a serviço das estrelas. Pela simples descrição de suas atividades percebe-se que os dois vivem em mundos praticamente antagônicos. O homem revisita o passado e as obras fundamentais da Sétima Arte, não encontrando equivalências na atualidade repleta de "gênios imediatos" e blockbusters. Já a mulher ajuda a fomentar e manter as disposições imediatas da indústria, tais como a fama e a necessidade de ter respaldo em diversas áreas para ser considerado relevante. Todavia, o filme não fica ruminando esse distanciamento, apenas o sinaliza para mostrar que os opostos evidentemente podem se atrair, mas, quando vem a crise, tais desacordos tendem a gerar abismos. E novamente o cineasta mais profundamente novaiorquino do cinema estadunidense faz uso de um olhar turístico, haja vista a valorização da paisagem paradisíaca e luminosa.

A belíssima fotografia de Vittorio Storaro ressalta a beleza da cidade espanhola, enfatizando as cores do mar ao longe, a arquitetura fascinante, frequentemente enfatizando o charme daquele espaço lindo e que está recebendo um charmoso evento de cinema. O cenário se torna uma moldura exuberante para as reflexões de Mort sobre a melhor maneira de seguir existindo. Woody Allen poderia ser acusado de abordar a localidade meramente como alguém tentando comercializar o seu potencial turístico, assim oferecendo uma belíssima contrapartida aos financiadores de O Festival do Amor. Mas, embora também cumpra essa tarefa, ele agrega a perspectiva extasiada organicamente aos passeios do personagem principal. Wallace Shawn entra para o rol de atores que incorporaram na tela a maneira de Allen de encarar a vida. Ele vive o típico paradoxo pessimista-melancólico que não encontra sentido em viver, mesmo entendendo a necessidade de seguir vivendo. Para isso, o cinema é tão importante nessa nova realização que volta a apresentar o amor imenso do cineasta pelos clássicos e, em contrapartida, como ele enxerga o circo montado em torno das produções e das celebridades.

Mort não deseja ficar enfurnado nas salas escuras do Festival de San Sebastian assistindo aos filmes em competição. Na sessão de Acossado (1960), ele demonstra mais preocupação com as mãos da esposa tocando furtivamente as do novo gênio do pedaço, interpretado por Louis Garrel, do que necessariamente com a revisita privilegiada a um dos exemplares favoritos da Nouvelle Vague. Assim é visto também como um tanto ridículo. Na verdade, em O Festival do Amor há uma contradição muito bem trabalhada por Woody Allen, já que o rabugento desinteressado pelo evento acaba idealizando e sonhando a partir de filmes do passado que lhe marcaram profundamente. É como se o diretor norte-americano nos dissesse constantemente que aquela movimentação toda de pessoas supostamente celebrando as obras depois de atravessar o tapete vermelho é mera perfumaria maquinada pelo marketing. O importante é a forma como utilizamos as experiências diante da telona para ressignificar o nosso viver, a fim de tentar preencher melhor o vazio da existência. Pode-se dizer que nas entrelinhas da fantasia de Mort quanto ao amor novo, acaba prevalecendo o amor antigo pelo cinema.

O enredo propriamente dito não tem grandes surpresas e/ou reviravoltas. Mort desconfia da infidelidade da esposa e romantiza a partir de uma novidade, a doutora Rojas (Elena Anaya). Woody Allen não determina se a paixão ocasional do protagonista pela desconhecida se trata de uma atração genuína ou de uma espécie de devaneio no qual se transforma em cavaleiro (auto)incumbido da tarefa de salvar a donzela de um casamento infeliz. Toda a dinâmica com o marido intenso da médica serve para acentuar no protagonista essa natureza supostamente nobre de sua empreitada afetiva (resgatar alguém da tristeza), o que evidentemente é observado por Allen como autoindulgência. No fim das contas, Mort é mais egoísta dos que as conveniências de sua justificação moral o fazem perceber. Ele se torna uma versão um tanto caricatural, mas adorável por sua clara vulnerabilidade, do personagem de John Wayne em Rastros de Ódio (1956), ou seja, alguém disposto a resgatar outrem das garras do "inimigo", mas nesse processo tentando espiar as próprias questões mal resolvidas. Já vimos várias figuras como ele na filmografia de Woody Allen, semelhantes em teor e intenção.

O Festival do Amor dispõe saborosamente uma série de estereótipos. O artista plástico passional e sexualmente liberal/voraz (muito semelhante ao que apareceu em Vicky, Cristina Barcelona, 2008) e o cineasta jovem precocemente celebrado que acredita estar mudando o mundo através de sua visão supostamente sensível e engajada da atualidade são dois deles. Já as representações de filmes clássicos poderiam ser mero fetichismo entusiástico, mas entram de maneira orgânica para expandir personagens e lógicas de um jeito bonito. Jules e Jim (1962) serve para aludir ao triângulo amoroso que Mort imagina; Persona (1966) ao balanço entre Rojas e Sue; 8 e ½ (1963) e Cidadão Kane (1941) para evocar os pais; Acossado é reencenado em prol do diálogo sobre a efemeridade do amor; a versão de O Sétimo Selo (1957) discute sobre (com) a morte. Elementos e conjunturas comuns (infidelidade, encantamento, paixão, arrependimentos, consternação, tédio, rotina etc.) são ressignificados pela embalagem sublime do cinema, para Woody Allen maior que a vida por transcende-la. A Sétima Arte é menos suscetível às corrosões inevitáveis pós-euforia inicial. Na telona, amores, decepções, sofrimentos e até as banalidades ganham ares de sonho.

Filme visto durante o 23º Festival do Rio, em dezembro de 2021.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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