Crítica
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Sinopse
No dia de seu aniversário, Ariane se sente ainda mais sozinha, pois seus entes queridos não aparecem. Ela então deixa sua adorável vizinhança e parte numa viagem de carro à ensolarada cidade de Marselha, na França.
Crítica
O engajamento político e a crítica sociocultural estão entre as principais marcas do cinema do francês Robert Guédiguian. Em praticamente todos os seus trabalhos, incluindo os mais notórios, como A Cidade Está Tranquila (2000) e As Neves do Kilimanjaro (2011), o diretor trata do cotidiano e das mazelas da classe trabalhadora de seu país, deixando claro o seu posicionamento de esquerda. É compreensível, portanto, que O Fio de Ariane, ao menos a princípio, surpreenda o espectador ao apresentar uma ruptura parcial do cineasta com seu apego à realidade social para adentrar um universo fantástico. Ainda que soe como um choque, a sensação é apenas momentânea, já que ao longo desta fantasia, Guédiguian encontra espaço para inserir sua agenda temática habitual, mesmo que de forma menos explícita.
A trama mostra Ariane (Ariane Ascaride), uma mulher de meia-idade que no dia de seu aniversário é esquecida por parentes e amigos. Entristecida pela situação, sai de casa sem rumo e acaba sendo levada por um jovem rapaz até um restaurante à beira-mar, onde irá conhecer diversas figuras peculiares. Logo nas cenas iniciais, Guédiguian expõe seu jogo de contrastes entre real e imaginário, fazendo sua câmera viajar por uma maquete tridimensional, completamente branca, do condomínio em que Ariane vive. Um ambiente impessoal e padronizado que retrata a visão do diretor sobre a classe “média alta” francesa. É só a partir da fuga da realidade da protagonista que o cenário ganha vida com as cores da fotografia ensolarada e com a música que vem dos carros, fazendo seus passageiros dançarem enquanto esperam uma ponte baixar.
Este princípio da jornada de Ariane possui uma estrutura de pesadelo kafkiano, com uma série de infortúnios ocorrendo com a personagem: o taxista que a transporta só sabe falar de gatos, seu carro é guinchado, sua bolsa é roubada, etc. Aos poucos, porém, uma atmosfera mais leve e de sonho toma conta do longa, permitindo que Guédiguian brinque com o absurdo, como a presença de uma tartaruga falante, e construa a narrativa com situações muitas vezes desconexas, quase surrealistas. Estes fragmentos de história espelham os desejos e aflições de Ariane – como a vontade de seguir os passos da mãe e se tornar uma cantora – e dentro do mundo de imaginação criado pelo cineasta, ela encontra a possibilidade de suprir estes anseios.
Guédiguian submete sua protagonista a uma experiência transformadora, transmitida com extremo carisma e sensibilidade pela interpretação de Ariane Ascaride, musa e esposa do cineasta, que volta a trabalhar com o marido, assim como quase todo o resto do elenco: Jacques Boudet, Gérard Meylan, Adrien Jolivet e o sempre ótimo Jean-Pierre Darroussin em papel triplo. O amálgama de personagens bizarros da trama serve para que o diretor explore temas importantes, como o tratamento recebido pelas mulheres na sociedade atual, através da figura da bela e ruiva prostituta Lola (Lola Naymark) e da própria Ariane. A ambientação em Marselha – algo recorrente na obra de Guédiguian por ser sua cidade natal – é outro elemento que alavanca críticas sociais. Seja pela concentração da classe operária – algo marcado também pelas letras das canções de Jean Ferrat – ou pela estreita relação da cidade portuária com as ondas de imigração.
O imigrante Marcial (Youssouf Djaoro) é sem dúvidas uma das figuras mais marcantes do longa, e seus dramas – não conseguir retornar para seu país devido à burocracia e a vontade de libertar os animais empalhados do museu onde trabalhava como segurança – movem boa parte da história, além de simbolizarem uma das maiores características do cinema de Guédiguian: sua crença, sem qualquer sentido religioso, no senso de comunhão entre as pessoas. Assim como já ocorrera no excelente e já citado As Neves do Kilimanjaro, o otimismo do cineasta em relação ao futuro da sociedade termina por contagiar seus personagens, e mesmo que apresente algumas ideias que possam soar ingênuas, é difícil não se deixar levar por seu sentimento de esperança.
É com este espírito encorajador que a jornada de Ariane se completa, entre sonhos vividos em um palco e algumas desilusões esquecidas em alto-mar. A personagem encontra no companheirismo o conforto para o abandono inicial, e sua busca por liberdade surge como um reflexo da busca por liberdade narrativa do próprio Guédiguian. O cineasta prefere se arriscar por novos terrenos a se manter no lugar-comum, o que por si já é uma atitude admirável. E o resultado, mesmo que imperfeito, nunca deixa de envolver e encantar.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Leonardo Ribeiro | 7 |
Alysson Oliveira | 7 |
Marcelo Müller | 8 |
MÉDIA | 7.3 |
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