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Crítica


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Sinopse

Em 1957, o francês Pierre vai a Moscou para estagiar na universidade local. Lá ele conhece Kira, bailarina do Teatro Bolshoi, e o fotógrafo Vera. Juntos, eles mergulham nas vidas culturais da capital, a oficial e a underground.

Crítica

Há uma solenidade subaproveitada em O Francês, sobretudo como tom analítico do Estado socialista da União Soviética no fim dos anos 1950. O preto e branco, as conversas sobre os rumos políticos, especialmente os de Moscou, as diferenças culturais deflagradas pela presença de um intercambista francês no protagonismo, tudo isso é minimizado pela morosidade com a qual a trama se desenrola. O prólogo, ambientado na luminosa Paris, com o jovem soldado prestes a embarcar à Argélia demonstrando-se contrário ao conflito e o comunista de ascendência russa defendendo a posição imperialista francesa, poderia ser um indício e tanto. Porém, essa observação das contradições humanas e ideológicas empalidece dali para frente, quando Pierre Durant (Anton Rival) chega à capital russa para, entre outras coisas, compreender do que é feito o território. Apostando em sequências longas e diálogos não menos estendidos, o cineasta Andrey Smirnov submete o espectador a uma verborragia caótica, acelerada, incapaz de conferir terreno para as circunstâncias assentarem e ressoarem.

Sem um claro senso de prioridade, O Francês às vezes parece fundamentado na construção de um panorama social pela ótica do estrangeiro. Isso, porque Pierre transita em vários instantes por ocasiões em que é percebido forasteiro. Noutras, soa como mergulho no cenário alternativo da cidade regida por políticas estatais bastante rígidas. Bem lá de vez em quando, assume os contornos de jornada pessoal, pois Pierre, em busca de suas raízes locais, permanece no encalço de um sujeito que pode ter sido determinante à sua existência. A sensação de que algumas passagens são gratuitas não advém exatamente da prevalência dessa fragmentação, mas da falta de consistência dramática das situações encenadas sem pujança, com uma visível frouxidão. O realizador demonstra displicência diante de componentes que, uma vez sublinhados, poderiam conferir ao filme uma personalidade maior. Até o envolvimento de Pierre com a bailarina Kira (Evguenya Obraztsova) é uma concessão (mal aproveitada) a uma lógica do melodrama histórico, a dos dois mundos inconciliáveis.

É difícil tachar quais são as principais motivações de Pierre. Nem sua colocação paradoxal diante da disputa entre reformistas e conservadores é bem utilizada. O enredo se arrasta em conversas cujo conteúdo é confuso. Se, ao menos, Andrey Smirnov demonstrasse interesse pela construção de um painel histórico-cultural encorpado, os colóquios intermináveis talvez soariam menos contraproducentes. Diga-se, não é a extensão das conversas que gera uma sensação asfixiante, mas a falta de densidade das palavras e das articulações feitas a partir de sua prioridade. Outro exemplo de desperdício é a negligência da resistência juvenil aos ditames governamentais endurecidos. O vislumbre da depredação do patrimônio estatal, coibido com uma velocidade impressionante pelas autoridades, não é suficiente para essa dimensão ser consolidada. Curiosamente, o filme cresce nos 30 minutos derradeiros, provavelmente pela clareza que não mais encobre uma frágil lógica de insinuações. Quando ficam evidentes as questões em jogo, O Francês, tardiamente, se revela interessante.

Nesse sentido, é mais forte, expressiva e dramaticamente falando, a constatação frontal da decadência da nobreza em virtude do sistema socialista vigente na União Soviética. O pai de Pierre, embora sob a alcunha de conde, numa reverência à sua linhagem burguesa, não passa de um assalariado no período coberto pelo longa-metragem. Ainda que não se detenha numa análise social a respeito desse deslocamento, Andrey Smirnov cede o espaço antes consagrado ao falatório atropelado para os personagens se colocarem da melhor maneira possível, dadas as impossibilidades. Porém, mesmo no quarto final promissor, O Francês volta a escorregar com a valorização do romance praticamente anódino, de implicações emocionais certamente desproporcionais ao seu pouco entendimento como força motriz até ali. Temas como a desterritorialização, o desconforto com a ignorância quanto às próprias raízes, as ambiguidades de um Estado socialista fustigado pelo capitalismo no entorno europeu, são reduzidos a meras citações, a debates fugazes sem tanta reverberação e impacto.

Filme visto online no 1º Festival de Cinema Russo, em dezembro de 2020.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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