Crítica
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Sinopse
Em meio ao universo de uma tradicional família austríaca, que é dona do Grande Circo Knieps, nasceu um improvável romance entre um aristocrata e uma acrobata. Este é o retrato dos 100 anos de existência do Grande Circo e das cinco gerações de uma mesma família que estivem à frente do espetáculo com suas histórias fantásticas.
Crítica
Célebre tanto por filmes mais aferrados ao naturalismo, como A Grande Cidade (1966), quanto por obras nas quais a realidade é tangenciada pela fábula, vide Bye Bye Brasil (1980), o cineasta Cacá Diegues acalentou durante muitos anos o desejo de fazer uma adaptação cinematográfica do poema O Grande Circo Místico, de Jorge Lima. Esta aguardada produção aborda as dores e as delícias de cinco gerações de uma família nascida do encontro improvável entre um aristocrata bastardo – filho da imperatriz exilada no Brasil com o proeminente médico local – e uma trapezista. Fred (Rafael Lozano) se enamora perdidamente por Beatriz (Bruna Linzmeyer), exigindo de herança um circo, começando a prole cuja trajetória cria as bases do longa-metragem. Obviamente prevalente, o tom lírico é utilizado pelo cineasta ora como muleta, ora na condição de contorno primal. Não há preocupação quanto ao desenvolvimento dos personagens. Eles valem apenas como símbolos nesse ideário que, infelizmente, não logra êxito na tentativa de promover um crescendo efetivo de decadência.
O Grande Circo Místico demonstra uma fragilidade surpreendente, levando-se em consideração que é conduzido por um dos nossos cineastas mais importantes. Em determinados momentos, Cacá Diegues parece deslumbrado demais com as cores ressaltadas pela bela fotografia de Gustavo Hadba, deixando a densidade dramática/poética num plano, quando muito, intermediário. Excertos musicais, como a emotiva entrada triunfal da mambembe Beatriz em cena, embalada pela canção homônima na voz de Milton Nascimento, ensaiam o surgimentos de tons oníricos, mas acabam deslocados no conjunto, pela forma como são arbitrariamente instrumentalizados. Celavi (Jesuíta Barbosa) é o único tipo presente plenamente no centenário circense, sem envelhecer fisicamente, encarnando de forma simplória os diversos espíritos das épocas aludidas. Realmente, é bastante circunstancial e frágil a interlocução com o mundo exterior, com parcos fragmentos como o dos soldados que denotam o período da Ditadura Civil-Militar. Tudo é voltado ao que acontece no picadeiro, aos amores e infortúnios que atravessam os Knieps impiedosamente como fardo.
Falta uma urdidura consistente a O Grande Circo Místico, do que decorre a fragmentação excessiva. Os herdeiros do circo são unidos pela melancolia, invariavelmente encarando o peso dos anos. É como se a lona representasse suas próprias peles, com a inexorabilidade das tragédias pessoais passando necessariamente pelo gradativo anacronismo daquele espetáculo que depende do imaginário e da capacidade do público de maravilhar-se. Mas nada disso é aprofundado e/ou investigado. Com uma trilha sonora a cargo de Chico Buarque e Edu Lobo, pontuada por canções populares, o filme pena para cerzir seus trechos cronologicamente distintos, correndo em desabalada carreira de um ciclo ao outro. A filha de Fred, Charlotte (Marina Provenzzano), nascida na cena em que a morte sob os holofotes é banalizada pelo nascimento concomitante, padece nas mãos de Jean-Paul (Vincent Cassel), o mágico francês que lhe inicia sexualmente. Desse relacionamento, nascem os irmãos curiosos, sendo um deles, Oto (Juliano Cazarré), o “beneficiário” do legado familiar, enquanto a irmã parte para tentar a vida no teatro na cidade grande. O antiquado perpassa o enredo.
O Grande Circo Místico se ressente bastante da falta de um alinhave firme. Por isso, prevalece o contraproducente da vocação episódica. Partindo do pressuposto (questionável) de que à fábula tudo é absolutamente permitido, Cacá Diegues incorre em construções banais, como a cessão das gêmeas ao homem que paga por seus corpos. Demasiadamente apoiado numa atmosfera lúdica, quebradiça e volúvel, o experiente realizador cria uma obra potencialmente bela, mas efetivamente muito irregular. É prejudicado pela maneira como desenvolve sua trama lacunar, repleta de disposições frágeis, como o kitsch flanar das vestais nuas sobre o picadeiro encantado, artifício combalido pelo sentimentalismo e a falta de jeito. Distante de investir numa natureza de saltimbancos, intrínseca aos circos de outrora, o filme transcorre num cenário com ares de musical teatral, sem que haja, por exemplo, diferenças consideráveis entre os dias de glória e os de penúria. Em meio a esse cabedal essencialmente subaproveitado, o elenco se esforça, criando figuras bem marcantes, mas desprovidas de estofo.
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É um roteiro feito a partir de um poema de 45 versos. Não há, desde o original, aprofundamento de personagens (a biografia de muitos personagens foi escrita em um verso ou menos) ou enredo de cenas bem cerzidas. E o poema original é feito de tudo que você se ressente do filme, como a vocação episódica, o flanar Kitsch das vestais, a atmosfera lúbrica, volátil, a fabulação excessiva. O diretor talvez tenha sido fiel demais ao poema; provavelmente mais fiel ao poema que ao cinema. Não vi o filme, mas 'vi' o poema em cada uma das estranhezas cinematográficas que você apontou no final da sua crítica - o que, como fã do poeta Jorge de Lima, só aumentou minha admiração pelo Cacá Diegues