float(42) float(17) float(2.5)

Crítica


3

Leitores


17 votos 5

Onde Assistir

Sinopse

Um dia, o criador de videogames Kirill descobre que as pessoas de sua vida não o conhecem mais. Enquanto procura pelo motivo de seu apagamento, é levado a um mundo mágico onde controla a união entre universos paralelos.

Crítica

Desde os primeiros minutos, Kirill Maximov (Nikita Volkov) constitui “o escolhido”. Ele é preso por policiais, mas liberado segundos depois porque estes têm um caso mais perigoso em que trabalhar. Quando chega em casa, descobre que ninguém o conhece: o jovem foi apagado da memória de todas as pessoas próximas. Um golpe do destino mais tarde, e este criador de videogames acorda diante de uma torre, onde lhe dizem que deve trabalhar daqui para frente. Trata-se de uma zona de transição entre mundos, cabendo a ele abrir as portas necessárias. Todas as ações são concebidas para Kirill; todo personagem entra em cena para desafiá-lo ou provocá-lo. O garoto constitui o nosso Percy Jackson, Katniss Everdeen, Tris Prior ou Thomas, tornando-se o alvo dos maiores vilões e a paixão das mulheres mais lindas. Compreende-se que estas ficções constituam uma utopia escapista de pré-adolescentes: elas se passam no mundo onde uma pessoa ordinária se torna o centro do universo do dia para a noite, adquirindo superpoderes, inteligência excepcional e a validação dos adversários poderosos. Este mundo egoico serve para reforçar um delírio de grandeza, sem esforço nem mérito. Subitamente, uma dimensão paralela o convoca para liderar uma nova revolução: você já era especial esse tempo todo, mas não sabia.

Infelizmente, Kirill constitui um protagonista profundamente inconsistente. Ele é apresentado como um “criador de mundos”, por ser um gênio do desenvolvimento de videogames. No entanto, a habilidade não lhe serve em nenhum passo da aventura. As provações do mundo mágico desafiam o jovem a ser um melhor namorado, no entanto, jamais temos qualquer prova de sua negligência com a namorada para além de ter se esquecido do aniversário dela. Ele se torna o agente de uma estância aduaneira – o cargo mais cobiçado dos mundos -, no entanto, jamais efetua qualquer trabalho de fato – o rapaz se limita a ficar sentado e observar as portas ao redor. Ele tem o poder de abrir algumas delas, porém o espectador jamais sabe por que estão fechadas, que habilidades seriam necessárias para abri-las, e o que se esconde atrás de cada uma. Sabemos da existência de diversos mundos, sem compreender como se conectam. Kirill demonstra impressionante capacidade de luta durante o encontro com uma Boneca Russa assassina, entretanto, o talento para saltos e chutes desaparece nas demais cenas. O protagonista não possui um objetivo definido, nem determina os rumos da narrativa, pelo fato de ser inserido num mundo que funciona apesar dele. O designer de games apenas reage, aprende, se adapta. Os personagens coadjuvantes o elogiam como o melhor agente aduaneiro em todos os tempos, ainda que o motivo de tamanha apreciação constitua um mistério.

O herói navega por uma narrativa episódica, talvez justificável dentro do livro que lhe serviu de origem, porém desconexa no conjunto. A estrutura do roteiro é o mais perto que este filme chega dos videogames ao estruturar suas cenas de modo episódico e autônomo. A cada momento, Kirill enfrenta um novo vilão, precisando sobreviver ao momento seguinte. Os motivos para uma dezena de pessoas quererem enfrentá-lo são frágeis, porém reforçam a importância do jovem. Qualquer coadjuvante que apareça em cena, com exceção da mocinha (cuja função, como na maioria das fantasias adolescentes, consiste em esperar pelo resgate do herói), representa uma nova ameaça. Os sucessivos mundos se tornam cenários artificiais com os quais Kirill interage muito pouco, limitando-se a admirar ou fugir. Mesmo os espaços do farol/alfândega e da casa central possuem paredes lisas, desenhos limpos, personagens impecavelmente vestidos. Em se tratando de uma fantasia, não se esperaria um realismo crítico, no entanto, o contraste entre os mundos (em termos de fisicalidade, cores, textura, poderes mágicos) seria fundamental para o desenvolvimento da jornada. Consegue imaginar Alice encontrando dezenas de maravilhas iguais? Ora, todos os cenários atrás das portas se tornam equivalentes.

O diretor Sergey Mokritskiy, experiente diretor de fotografia e cineasta especializado em obras fantásticas, aposta que a overdose de efeitos especiais servirá para encantar o público. Ironicamente, o terço inicial, próximo do naturalismo, se torna o mais interessante: quando Kirill é apagado do mundo real, a tentativa de provar sua existência remete a algo próximo do realismo fantástico, um conto digno da imaginação de Saramago. Em seguida, conforme o filme aposta em praias ao por do sol, universos apocalípticos baseados no regime soviético e mundos futuristas com naves ocupando o céu, mais frágil se torna. Quando tudo pode se tornar magia, pende-se facilmente à aleatoriedade: uma queda d’água pode aprisionar braços de pessoas, uma banheira se transforma em pedra de gelo, a falta de água faz com que corpos adquiram uma película com aparência de caveira. Jamais se justifica nenhum desses procedimentos: eles apenas acontecem. Por que a força excepcional deste agente alfandegário não serviria a abrir as portas? Por que, sabendo que precisaria de água no longo trajeto rumo à mocinha em perigo, ele quase morre de sede? Por que, diante do ataque de uma líder soviética, não revida como havia feito com as bonecas russas? O Guardião dos Mundos (2018) resulta num esforço barulhento, repleto de objetos voando pelos ares. No entanto, quando não sabemos exatamente o que está voando, por que motivo, ou qual perigo este elemento representa, o caos se torna uma ferramenta retórica.

Ao final, nenhum conflito se resolve, visto que o projeto se insere numa saga buscando continuação. Os únicos objetivos de Kirill (reconquistar a namorada e os pais que se esqueceram dele) são suspensos nesta primeira metade da suposta narrativa em dois filmes. A conclusão remete a uma fábula moralizadora, como se o jovem ordinário precisasse provar sua masculinidade para conquistar o afeto de outras pessoas. Não por acaso, o criador de videogames aparece nu em frente de mulheres sombrias, é beijado e procurado por elas. A emancipação passa pela libido e pelo domínio do corpo, transformado numa máquina de músculos. Para ser o escolhido, curiosamente, bastaria persistência e força de vontade, como se todo adolescente pudesse ter sua grande jornada e seu mundo particular. Paradoxo à vista: vende-se a todos o sonho de ser único. Há uma evidente tensão entre a individualidade e o coletivo (Kirill luta para salvar os mundos sabe-se lá contra o que, ou contra quem), entre o tedioso mundo real e a instigante cosmogonia. Este universo grandiloquente reforça o quão insignificante seria o protagonista, por oposição. Por trás deste delírio teen, confirma-se nas entrelinhas a sensação de impotência e emasculação dos garotinhos confrontados ao mundo adulto.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *