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Crítica


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Onde Assistir

Sinopse

Um casal que mora na cidade canadense de Quebec lida com os desafios constantes que dizem respeito a criar filhos numa sociedade que supervaloriza as imagens projetadas nas redes sociais.

Crítica

O marido e a esposa estão na cama. Ela, antes de se acomodar, dá uma ultima olhada em seu perfil nas redes sociais. Quer tanto verificar se sua última foto recebeu a quantidade de curtidas que esperava, como também se preocupa com o que as amigas estão publicando. Dando-se por satisfeita, volta-se ao homem ao seu lado, que apaga sua luz de cabeceira, declarando-se cansado. Ele lhe dá um beijo rápido, e se vira, fechando os olhos. Ela insiste em uma aproximação, mas é rechaçada com carinho. Determinada, abre uma gaveta e de lá retira um vibrador. Não pensa em se masturbar sozinha: quer atrair a atenção dele. E consegue. Os dois, enfim, se beijam com mais vontade. Tiram as roupas de dormir. Quando as coisas começam a esquentar, um gemido interrompe os planos do casal. O filho pequeno está parado diante dos dois, reclamando de um pesadelo, pedindo para deitar com eles. O pai o manda de volta para o próprio quarto, mas sem muita ênfase. A mãe nem se esforça, e diz para a criança se aproximar. Assim começa O Guia da Família Perfeita. Como se percebe, há muito o que precisam trabalhar para alcançar esse tal ideal. Felizmente, o filme não tem pressa em desenhar esse quadro, e o faz com um misto de delicadeza e objetividade.

Produção canadense filmada na região de Quebec – ou seja, falada inteiramente em francês – o longa dirigido por Ricardo Trogi (Instintos Primitivos, 2005) parte de um universo bastante próximo ao visto no franco-belga Apagar o Histórico (2020), mas sem o humor sarcástico deste, preferindo centrar sua atenção no registro familiar proposto na sequência de abertura e em suas ramificações. Além do trio descrito acima, há ainda a filha mais velha dele, fruto do seu primeiro casamento, que mora com o pai, a madrasta e o meio-irmão. O homem leva a garota todos os dias para o colégio, que fica no seu caminho rumo ao escritório, não sem antes entrar no site do colégio dela e acompanhar suas notas nas últimas provas. Na despedida, a mesma pergunta de sempre: “quem é a minha campeã?”, à qual ela responde, sem muito entusiasmo, em concordância. A pressão, ainda que sutil, está presente.

E se erra com a garota sem nem se dar conta, com o caçula a situação não é muito diferente. O menino joga os alimentos de cada refeição no chão, além de outras desobediências, e o máximo que recebe como retorno é uma cara feia e uma reprimenda que parece mais estimulá-lo a continuar repetindo o gesto do que de fato castigá-lo pela má-educação. Já com a primogênita o acordo é outro: uma nota de $50 para cada nota B, ou uma de $100 para cada A recebido. O orgulho é em ser o melhor, independente de como se alcance tal resultado. Mas a jovem não tem nesse acerto sua única fonte de renda. Afinal, por mais que esteja gastando para adquirir provas dos anos anteriores de alunos mais velhos – e, com isso, garantindo as respostas corretas com antecedência – também está envolvida num mercado paralelo de fornecimento de drogas e outros medicamentos para seus colegas, surrupiados dos armários e bolsas dos pais. Nada muito pesado, mas o suficiente para lidar com uma tarja preta.

No meio disso, há uma esposa mais atenta ao registro com seu smartphone da formatura do jardim de infância e com a foto familiar de todos vestindo as mesmas roupas e em como tais imagens poderão render em engajamentos a cada publicação, do que em de fato enfrentar questões mais terrenas, como a educação dos filhos, os desenlaces profissionais do marido e sua própria carreira além da condição de dona de casa. Da mesma forma, ele posa de motivador, bem-sucedido e exemplo em casa, mas se enrola nas negociações em inglês, não consegue fechar o contrato que a empresa inteira espera com ansiedade e não é capaz nem mesmo de fazer que seu auxiliar cumpra o horário de trabalho. Ambos vivem mais para os outros, para os vizinhos, parentes, colegas e amigos, do que para si mesmos. Um problema que está longe de ser particular.

Louis Morissette, o intérprete do pai e marido, é também um dos autores do roteiro, e isso talvez explique o fato dele ser o centro de quase todos os acontecimentos. A relação complicada com a ex-mulher, a falta de entendimento com a filha, a ausência de conexão com a nova esposa e a aparente desistência em relação ao filho pequeno (“ele é apenas uma criança”, não se cansa de repetir). Mas os interesses aqui despertados vão além da figura masculina da casa. Assim, O Guia da Família Perfeita se mostra pertinente em apontar para conflitos de uma geração indecisa entre replicar velhos passos e se apropriar de novos caminhos. Por mais que o mergulho proposto não seja dos mais profundos, há uma vontade de não olhar para o lado e encarar de frente essa realidade. Pode não dar o debate por encerrado – longe disso, aliás – mas já é um começo de conversa.

 

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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