Crítica
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Sinopse
Depois de um tempo longe dos holofotes, Aurélio e sua banda de punk rock finalmente se preparam para retornar aos palcos. A apresentação é prejudicada pela disseminação de um vídeo na redes sociais, relacionando o músico ao assassinato de um policial. Enquanto sofre com a repercussão negativa dos fãs, Aurélio percorre a cidade de São Paulo durante a noite, em busca de respostas.
Crítica
“O mundo deve ser lindo visto pelos teus olhos de homem branco”, diz certo personagem em determinado momento de O Homem Cordial. Quem fala, como é possível imaginar, é um homem negro de periferia, e ele está se dirigindo ao protagonista – obviamente um homem branco morador de uma zona mais central da cidade grande. Esses contrapontos um tanto esquemáticos se repetem mais do que o necessário – ou desejado – no segundo longa-metragem do diretor e roteirista Iberê Carvalho. O anterior, O Último Cine Drive-In (2015), foi premiado em diversos festivais – São Paulo, Gramado, Punta Del Este, Texas. Um começo que muitos se apressaram em apontar como auspicioso – ainda que não desprovido de alguns tropeços. O que se percebe, dessa vez, é um notável avanço do realizador no domínio da câmera, especialmente no lado técnico da produção, mesmo que seja inegável a mão pesada com a qual conduz sua trama.
Há vários começos em O Homem Cordial. O personagem-título é Aurélio (Paulo Miklos), o líder de uma banda de rock que fez sucesso nos anos 1980, e que agora, décadas depois, ensaia um recomeço. No meio do show que deveria marcar o retorno do grupo, o público se volta contra o cantor e, do aplauso, parte para a vaia e agressões, físicas (jogando copos e outros objetos no palco) e moral (com gritos e protestos). O que aconteceu foi que um vídeo com ele acabou viralizando na internet. Nas imagens, ele aparece defendendo um garoto de ser linchado por uma população em fúria. O problema é que o menino fora acusado de ter roubado um aparelho celular, e o policial que tentou prendê-lo acabou encontrado morto logo em seguida, enquanto que o jovem está desaparecido. Ou seja, o artista, de voz de protesto, se transformou em ‘defensor de bandido’.
Há elementos soltos no desenrolar da história. Se por um lado a fotografia é intrusiva na medida certa, contribuindo para o sentimento de cerceamento que o protagonista vai sofrendo no curso de uma noite – a referência mais imediata é o cult Depois de Horas (1985), de Martin Scorsese – Carvalho e seu co-roteirista, o uruguaio Pablo Stoll (Whisky, 2004), insistem de inserir outras questões paralelas que apenas funcionam como distração, ao invés de tornar o mergulho no caos que surge a partir de uma acusação sem fundamento ainda mais perturbador. A jornalista que quer “ouvir o outro lado”, os playboys que aproveitam para potencializar a própria imagem enquanto influenciadores digitais com as desgraças dos outros ou o ex-colega músico que virou dono de bar são figuras que, individualmente, seriam capazes de gerar boas reflexões. No entanto, da forma como são expostas – e dispostas pelo enredo – servem apenas como ruído, sem nunca justificar à contento o que poderiam dizer. Acumulam-se, sem nunca servirem como complemento umas das outras.
Entre tantas caricaturas, é de se lamentar que o único com o qual o espectador consiga algum tipo de conexão não ganhe a devida atenção. Miklos pode até afirmar, jocosamente, que está interpretando a si mesmo – um roqueiro que fez sucesso décadas atrás, afinal de contas – mas se percebe, nas entrelinhas, que há nele um esforço de composição. Ninguém, por outro lado, parece disposto a ouvi-lo. Ele tem certeza – e reafirma em mais de um momento – que não fez nada de errado. Mas toda vez que o questionamento se aprofunda – por quê tomou tal atitude? E por quê não defendeu sua posição até o final? – lhe parece faltar palavras. Por mais que esteja no centro da ação, não é com ele que a trama se preocupa: há uma diretriz clara a ser perseguida, e ela diz mais respeito ao contexto social extra-fílmico do que em relação à narrativa dramática com a qual deveria se concentrar.
Nada é tão problemático em O Homem Cordial, além do próprio título – talvez o projeto até tenha tido início antes, mas ao ser lançado um ano após o bem-sucedido O Animal Cordial (2017), tal proximidade sonora mais atrapalha do que contribui – é a necessidade constante de deixar tudo no preto ou no branco, eliminando as possíveis (e esperadas) áreas cinzentas. Toda dúvida que poderia humanizar os envolvidos é esclarecida em sua raiz, sempre reforçando estereótipos – o vilão é muito ruim, a vítima é totalmente inocente, os desavisados pagam o preço mais alto, a justiça é surda e cega – e aumentando as diferenças (e distâncias). O discurso que se esforça em defender é, evidentemente, repleto de boas intenções. Mas de que essas adiantam se não chegam a ser trabalhadas além da superfície?
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