Crítica

Se existe uma certeza no mundo do cinema é essa: é impossível fazer uma refilmagem de valor de qualquer filme de Alfred Hitchcock. As tentativas que já vimos no passado foram todas rasteiras, para dizer o mínimo. Simplesmente não é possível recriar trabalhos tão bem realizados pelo Mestre do Suspense. A não ser, claro, que o próprio Hitchcock veja esta necessidade e retrabalhe um de seus clássicos. Foi assim em 1956, quando o cineasta, já filmando em Hollywood, dirigiu o remake de O Homem que Sabia Demais, lançado originalmente em 1934, em sua fase inglesa. Com uma produção mais aprimorada e com James Stewart encabeçando o elenco, esta pode ser uma das poucas refilmagens de um filme de Hitchcock que valham a pena ser assistidas.

Por incrível que pareça, essa qualidade da produção de 1956 acabou tendo um lado negativo. Eclipsou o longa-metragem de 1934, que acabou menos conhecido que seu irmão rico. Mesmo que o próprio Hitchcock tenha achado motivos suficientes para um polimento da trama em uma produção mais refinada no futuro, O Homem que Sabia Demais original possui diversas qualidades que saltam aos olhos.

Na trama, assinada por Charles Bennett, D.B. Wyndham-Lewis, Edwin Greenwood e A.R. Rawlinson, o casal Bob (Leslie Banks) e Jill Lawrence (Edna Best) está em férias nos Alpes Suíços junto com sua filha, Betty (Nova Pilbeam). Durante o jantar, o casal testemunha a morte de Louis Bernard (Pierre Fresnay) que, em suas últimas palavras, confidencia um segredo perigoso: um assassinato acontecerá em Londres e eles são os únicos que podem fazer algo para evitar. A tarefa não será fácil, já que o mandante do crime, Abbott (Peter Lorre), decide sequestrar a filha do casal para que os dois silenciem sobre o futuro atentado. Agora, os pais de Betty precisarão descobrir o paradeiro da filha, envolvendo-se em uma trama perigosa.

Em muitos aspectos, a segunda versão de O Homem que Sabia Demais é superior à primeira tentativa de contar esta história. No entanto, o longa-metragem de 1934 tem um trunfo que pesa bastante a seu favor: o vilão. Interpretado por um Peter Lorre de sotaque arrastado, o nêmesis da família Lawrence é muito mais interessante e ameaçador, mesmo que sempre tenha uma expressão amistosa em seu rosto. Sua caracterização, com direito a mecha grisalha e cicatriz na testa, agrega muito ao personagem, assim como suas vestimentas pesadas. Conhecido na época pelo seu papel emblemático no clássico do cinema alemão M – O Vampiro de Dusseldorf (1931), Lorre empresta sua persona aterrorizante ao vilão deste filme. Papel de antagonista que faria muitas e muitas outras vezes em seus mais de trinta anos de carreira. Lorre é, sem dúvidas, o grande destaque desta versão. Até porque os mocinhos são um tanto insossos em comparação.

O clima de suspense de O Homem que Sabia Demais é palpável em boa parte da narrativa e ganha um plus pela fotografia em preto e branco. O lado cômico, tão presente em alguns clássicos de Hitchcock, também dá as caras neste trabalho, personificado pelos diálogos entre Bob e seu amigo Clive (Hugh Wakefield). O clímax no Albert Hall é muito bem trabalhado, com a câmera se movimentando ora em círculo, mostrando a procura de Jill pelo assassino, ora destacando a orquestra, que tem um papel importantíssimo nessa cena. O suspense, no entanto, se esvai na sequência final, do tiroteio, dando espaço para uma ação bang-bang extensa, que destoa do resto do filme. Hitchcock ainda procurava por seu estilo, sucumbindo a uma cena que pouco contribui para a história.

Em entrevista ao crítico e diretor francês François Truffaut, Hitchcock disse que sentiu necessidade em fazer uma nova versão de O Homem que Sabia Demais porque a primeira era uma obra de um talentoso amador, enquanto que a segunda seria feita por um profissional. Não deixa de ser interessante para um fã do Mestre do Suspense – ou do cinema em geral – observar estes dois momentos distintos do cineasta e notar que ambos possuem qualidades que se destacam. De um lado Peter Lorre, de outro James Stewart. Fantástico seria vê-los no mesmo O Homem que Sabia Demais.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista, produz e apresenta o programa de cinema Moviola, transmitido pela Rádio Unisinos FM 103.3. É também editor do blog Paradoxo.
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