Crítica
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Sinopse
Laurent está buscando um caminho para sua vida depois de passar a infância e a adolescência no comodismo. Ele tem uma relação difícil com Rodolphe, seu pai, e ambos são sensíveis demais para expressarem o que sentem pelo outro. Apesar das mulheres de sua vida estarem ao seu redor, Rodolphe tem apenas uma obsessão: reencontrar Marguerite, seu primeiro amor.
Crítica
Revisitar o passado em busca de uma compreensão aprofundada de si mesmo, tendo na investigação das relações amorosas pregressas a ferramenta para guiar essa jornada íntima, é o que propõe o francês Paul Vecchiali em O Ignorante, seu mais recente longa. A trama acompanha o período de quase uma década na vida de Rodolphe (o próprio Vecchiali), iniciado a partir do momento em que seu filho, Laurent (Pascal Cervo) decide morar com ele em sua bela residência no sul da França, visando estreitar a relação distante com pai. O passar dos anos, que divide a narrativa em capítulos, é marcado não só pela aproximação com Laurent, como também, e principalmente, pelos reencontros com as mulheres que povoam sua memória.
Há no cinema de Vecchiali um notável apreço pelo aspecto lúdico da encenação, não somente na teatralidade irrestrita, a qual o diretor recorreu ao adaptar Dostoievski em Noites Brancas no Píer (2014), mas no potencial lírico da arte cinematográfica como representação da realidade. Essa predileção fica clara nos primeiros minutos, durante a cena do assalto, onde antes mesmo que o suposto ladrão se revele como sendo Laurent, numa tentativa de alertar o pai sobre o perigo de morar sozinho, percebe-se a artificialidade da ação desde o visível revólver falso. O vínculo estreito com a linguagem teatral, ainda que abrandado, também aparece - no diálogo entre Rodolphe e Mimi (Françoise Arnoul) em frente a cortinas vermelhas iluminadas por um foco central de luz.
A fantasia é tratada com naturalidade pelo cineasta, surgindo no sonambulismo e nos devaneios de Laurent – como na divertida cena do pesadelo com os gêmeos fiscais, comparados aos detetives Dupond e Dupont das aventuras de Tintim. Ao estabelecer essa atmosfera quimérica, por vezes farsesca, Vecchiali abre a narrativa para todas as possibilidades de ruptura com o real. Dessa forma, ainda que a princípio surpreenda, não chega a soar implausível que a tentativa das sobrinhas de vender um retrato a Rodolphe irrompa em um número musical – a música e a dança, como na valsa com Laurent e Mimi, são elementos indissociáveis da obra de Vecchiali – que termina tão repentinamente quanto começa, evidenciando o tipo de humor do diretor, que caminha paralelamente ao romance e à melancolia.
A trama se desenvolve sobre uma constante relação de causa e efeito - como a freira (Edith Scob) que entra para o clero após o suicídio da irmã, ex-amante de Rodolphe - em grande parte ligada ao tema da paternidade. Além da dinâmica entre a dupla principal, e da existência do filho bastardo de Rodolphe, há o personagem do homem abandonado pela esposa que passa a morar com Laurent, iniciando uma relação dividida entre a atração e a projeção da figura paterna ausente, ou ainda o pai do ex-namorado de Laurent (Mathieu Amalric em ótima participação especial) que surge para confrontá-lo. Tudo isso é inserido por Vecchiali num universo que imageticamente se conecta ao anterior É o Amor (2015), tornando-o familiar: a casa onde se concentra a ação, a ambientação litorânea e solar, de aura bucólica.
Essa não é apenas uma opção de ordem narrativa ou estética, mas também financeira. A limitação orçamentária, no entanto, não é empecilho para Vecchiali. Ao contrário, ela acrescenta certo charme à obra, além de conferir total liberdade criativa ao cineasta, acentuando seu domínio da mise-en-scène. Nos reencontros de Rodolphe com suas antigas paixões, por exemplo, a câmera permanece quase sempre nos rostos das mulheres enquanto elas discursam. Planos subjetivos que colocam o espectador na posição de ouvinte de Rodolphe. Os truques visuais adotados remetem aos primórdios do cinema em seu estado mais puro: na cena em que Laurent e o namorado simplesmente desaparecem de quadro após comentarem que gostariam de sumir, nos efeitos sonoros das enxaquecas de Rodolphe, no simples, porém efetivo, jogo expressionista de luz e sombras do velório.
A escolha do elenco também é primordial para o trabalho de Vecchiali. A começar por Pascal Cervo, seu atual ator-fetiche. Dono de uma presença singular, Cervo evolui nessa nova colaboração, encarnando a figura que simboliza a inocência em contraste à aspereza do pai. Já ao assumir a parte de Rodolphe, um alter ego, Vecchiali não omite os traços autobiográficos da história. Algo que poderia ser interpretado como um exercício narcisista se o autor não reconhecesse e evidenciasse suas falhas como questões cruciais dessa jornada, ainda que a autocrítica não constitua um simples desejo de redenção. E, finalmente, temos Catherine Deneuve, a escolha perfeita para viver Marguerite, a grande paixão de Rodolphe. Pois, exceção feita a Brigitte Bardot, talvez não haja no imaginário da cinematografia francesa uma atriz que personifique a musa inatingível como Deneuve.
Vecchiali apresenta a personagem como um ser iluminado, envolvendo-a numa aura de devoção mágica, etérea, no mais belo momento do longa. Talvez na comparação direta com seus dois trabalhos anteriores, O Ignorante sofra mais com o ritmo gerado pelas repetições, mas, quando necessário, Vecchiali continua a manipular com destreza a dilatação do tempo - vide o longo e derradeiro plano. Um desfecho que transporta o espectador à praia, como já prenunciava a cena inaugural - única deslocada da ordem cronológica, potencializando o viés reflexivo da obra. Rodolphe finalmente se entrega ao seu amor através do mar, símbolo máximo da liberdade e da vastidão a ser explorada, como faz o cineasta com o próprio cinema, de uma maneira que, em outras mãos, poderia resultar apenas pedante ou ingênua. Mas que com Vecchiali exala uma sinceridade límpida responsável pelo fascínio único que exerce.
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