O Índio Cor de Rosa Contra a Fera Invisível: A Peleja de Noel Nutels
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Tiago Carvalho
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2020
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Brasil
Crítica
Leitores
Sinopse
Uma pandemia massacra as populações indígenas brasileiras. O governo ressoa os ditames da ditadura. Parece urgente ouvir novamente a voz do médico sanitarista Noel Nutels.
Crítica
Existe uma ideia segundo a qual o documentário consiste na arte do diálogo. Por manter relação próxima com o real (ainda que não seja obrigado a representá-lo enquanto tal), esta forma de cinema estabeleceria uma conversa constante entre as opiniões do autor e aquelas das pessoas filmadas. No caso de um projeto biográfico, ou portando sobre uma figura em particular, esta interação se faz ainda mais evidente. A direção não precisa concordar com o ponto de vista de seu personagem principal (vide Michael Moore e seus projetos de ódio contra George W. Bush), ainda que geralmente se prefira dialogar com pessoas admiradas e admiráveis – afinal, a equipe vai passar anos debruçada sobre aquele tema. No caso de O Índio Cor de Rosa Contra a Fera Invisível: A Peleja de Noel Nutels (2019), como o título sugere, o diálogo ocorre entre o diretor Tiago Carvalho e o médico sanitarista que trabalhou durante mais de duas décadas entre comunidades indígenas, denunciando o genocídio e o descaso das autoridades com estes povos durante a CPI do Índio, em 1968. Entre 1945 e 1962, Nutels efetuou gravações em 16mm das comunidades onde morou e trabalhou. O projeto aproveita os materiais originais para expor a situação em que se encontravam os índios na época.
O posicionamento do profissional da saúde se torna evidente graças ao registro em áudio. A maneira como enxergava aquelas famílias também é cristalina: Nutels defendia o direito dos índios a permanecerem em sua terra, mantendo sua cultura e língua, e perpetuando as crenças originais às novas gerações. Torna-se mais difícil, no entanto, descobrir as considerações do diretor não apenas sobre as gravações de seu protagonista, mas sobre os índios daquela época e sobre as comunidades de hoje. Pelo amplo espaço fornecido ao médico – a única voz escutada em todo o filme -, supõe-se um apoio irrestrito às ideias do mesmo. Talvez por ser fruto de seu tempo, o defensor dos índios ainda os considerava “primitivos”, e interpretava os missionários como “figuras formidáveis”, embora não estimasse que os indígenas precisassem assimilar o cristianismo – com certo pesar na voz, vale mencionar. O que o discurso do filme teria a dizer a respeito deste posicionamento certamente voluntarista, porém um tanto paternalista? Carvalho concorda com todas as ideias de seu objeto de estudo, visto que Nutels não é explorado enquanto indivíduo com passado e vida pessoal, sendo restrito à vertente profissional?
No caso de filmes que se apropriam de material filmado por terceiros, especialmente quando não são acrescentadas imagens próprias, o ponto de vista do autor decorre sobretudo da montagem. Rupturas bruscas no fim de cenas, interferências na imagem, aproximação entre cenas díspares e outros recursos do gênero permitiriam acompanhar a trajetória dos índios brasileiros pelos olhos da direção. Ora, o autor se esconde por trás de seu objeto de estudo, transformando o cinema num veículo para que o protagonista expresse suas ideias a uma geração posterior. O próprio fato de se resgatar a figura do indigenista constitui um ato político: pode-se sugerir que o lançamento do projeto durante um governo avesso à defesa dos índios provoca uma fricção por si só. No entanto, este atrito ocorre extra-filme, não no filme em si. Caberá ao espectador mais interessado efetuar as aproximações necessárias com o Brasil de 2020, visto que nenhum elemento da imagem ou do discurso nos remete a uma produção contemporânea. Aliás, um dos fatores mais curiosos do documentário se encontra no fato de não apenas evocar décadas passadas, mas também remeter ao cinema do século XX.
Um dos aspectos que sustentam esta impressão diz respeito ao uso da trilha sonora. Por se apropriar de gravações desprovidas do som, o filme embute uma quantidade expressiva de composições musicais ostensivas, incluindo grandes orquestrações em tom aventuresco, composições lúdicas ou dedilhados ao piano. Esta intervenção sugere que as singelas imagens de índios caçando ou pintando seus corpos possui algum elemento de exotismo, algo pitoresco ou fantástico. Ainda que se trate de composições brasileiras, incluindo Villa-Lobos, a utilização das mesmas produzem um caráter artificial de grandiosidade. A música contrasta com o despojamento das gravações (que não tinham intenções artísticas originalmente, vale lembrar) e reforça o tom incômodo de paternalismo do homem branco em relação aos índios. O emprego do Hino Nacional, em particular, traria leituras questionáveis dentro do contexto de ditadura militar (no caso da fala para a CPI). Em outras palavras, diante de uma espécie de documentação-diário para finalidade de arquivo, o projeto efetua um percurso de ficcionalização, ou mesmo de romantização do trabalho de Nutels. Não há dúvida do impacto daquelas falas na época – o médico acusava com veemência os políticos e pecuaristas -, no entanto, estes ornamentos transformam o protagonista em herói, ao invés de um profissional excelente em sua área de atuação.
Por fim, O Índio Cor de Rosa Contra a Fera Invisível: A Peleja de Noel Nutels cai na armadilha frequente dos documentários biográficos laudatórios ao se tornar refém de seu personagem. O médico efetua um monólogo, uma reprodução de sua fala sobre a proteção aos índios, enquanto o cinema se contenta em repercutir suas ideias. Enquanto veículo de conservação de um arquivo pouco conhecido e resgate de uma luta indigenista, o documentário cumpre o seu papel. No entanto, ele se isenta da responsabilidade de inserir estas falas no contexto de 2020, quando serão escutadas, por um público inserido em outro momento político. O que os índios contemporâneos pensam sobre Nutels? Quais indigenistas vieram depois dele, e de que forma atualizaram a luta em defesa de comunidades originais? O que pensam do raciocínio sobre seres “primitivos”, ou sobre os missionários evangélicos de hoje? Não seria necessário ter a frontalidade de Ex-Pajé (2018), nem adotar a liberdade formal de Segredos do Putumayo (2020) para reposicionar este discurso no país sob Bolsonaro. Bastaria investir numa forma de cinema tão atrevida quanto seu título. Afinal, soa incoerente narrar a peleja de um homem ousado por meio de uma linguagem acadêmica, ao som do Hino Nacional.
Filme visto online no 9º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, em outubro de 2020.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Bruno Carmelo | 4 |
Diego Benevides | 8 |
Chico Fireman | 7 |
Wallace Andrioli | 8 |
Francisco Carbone | 7 |
MÉDIA | 6.8 |
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