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Sinopse

Frank "O Irlandês" Sheeran é um veterano de guerra, condecorado, que se vê envolvido com a máfia italiana e, mais adiante, com as engrenagens escusas de determinadas instituições sindicais.  

Crítica

Em O Irlandês, o cineasta Martin Scorsese parece afirmar intermitentemente que a prepotência e a vaidade são prerrogativas de certas fases, pois elas teriam prazo de validade. Se trata do mais reflexivo de seus filmes de gângster – gênero que domina como poucos entre os realizadores em atividade. O enredo é condicionado por uma observação contundente e profunda da paradoxal fragilidade do poder adquirido por meio da intimidação e dos demais subterfúgios do submundo. E o que deflagra esse aspecto essencial é o fato do protagonista, Frank Sheeran (Robert De Niro), narrar tudo de um asilo. Destituído de toda a pompa adquirida nos anos de criminalidade, ele é nivelado pelo decurso do tempo aos colegas de instituição. O travelling pelos corredores dá conta disso, não se tratando de um movimento meramente contextual e/ou expositivo. Na medida em que a câmera passa por aquele lugar, revelando os moradores até chegar ao bandido prostrado numa cadeira, combalido pela velhice, também desenha essa realidade em que os abismos são dirimidos.

O Irlandês não seria possível sem a impressionante tecnologia que permite o rejuvenescimento dos intérpretes. Em determinadas cenas o artifício se revela ao espectador por não atingir um grau de excelência incontestável, mas não deixa de ser assombrosa a possibilidade de ver quase octogenários como Joe Pesci e Al Pacino remoçando por meio da magia desse cinema beneficiado pela artesania digital. A trama, baseada em fatos, mostra a ascensão de Frank dentro da máfia italiana sob a proteção de Russell Bufalino (Pesci), um dos principais mandatários locais. Essa relação de irmandade se desenvolve, basicamente, em dois tempos distintos, sendo eles os “verdes anos”, nos quais ambos experimentam a sensação de autoridade praticamente sem igual, e a maturidade, quando viajam de carro, na companhia das esposas, para prestigiar o casamento da sobrinha de um deles. Scorsese entremeia essas camadas temporais com a maestria que lhe é contumaz.

Outro elemento que aponta à direção brilhante de um dos expoentes da Nova Hollywood é a capacidade de amalgamar muitos personagens secundários e tramas paralelas, fazendo-os operar ora em conformidade, ora de modo minuciosamente complementar. Há, ao largo da trajetória de Frank, a construção de um painel social estadunidense demarcado por negociatas, pequenas vinganças que chocam personalidades políticas e empresários permanentes entre a legalidade e ilegalidade. São expostas as bases que fazem dos Estados Unidos uma nação edificada sobre a hipocrisia e a lei do mais forte. É particularmente comovente ver grandes atores como De Niro, Pesci, Pacino e Harvey Keitel tendo espaço para compor figuras complexas, capazes de atos atrozes, como as várias execuções a sangue frio, com tiros desferidos diretamente na cabeça, e, em semelhante medida, de zelar diligentemente por suas famílias. Essa ambiguidade é notavelmente trabalhada.

A entrada de Jimmy Hoffa (Pacino) confere a O Irlandês um deboche delicioso. Parte vital disso se deve ao desempenho excepcional do intérprete que coloca a intensidade que lhe é característica a serviço de um personagem histórico relevante. Hoffa foi um líder sindical de poderes sem precedentes nos Estados Unidos, cujas conexões com a marginalidade e os constantes embates com a família Kennedy tomam uma parcela significativa do filme. Martin Scorsese aponta frequentemente a destinos fatídicos, revelando mortes precoces, a maioria delas ocasionadas por atos brutais. E esse dispositivo é essencial para semear, paulatinamente, o que é colhido na meia hora magistral do longa-metragem, justamente a constatação de que o próprio decurso da vida, num compassado ritmo em direção à finitude, se encarrega de amainar a falsa sensação de onipotência com a qual os homens se regozijam por soberba. A morte os extirpa, não obedecendo aos desígnios mundanos.

Se compreendido dentro da obra de Scorsese, O Irlandês pode ser enquadrado como etapa lógica na trajetória dos filmes focados em gângsteres. Em Quem Bate à Minha Porta? (1967) havia jovens flertando romanticamente com a marginalidade; em Caminhos Perigosos (1973) era como se os aspirantes de outrora ocupassem as posições desejadas e curtissem a celebridade; em Os Bons Companheiros (1990) e Cassino (1995) já eram perceptíveis melancolia e decadência nesse recorte da sociedade. No novo filme há um pouco de tudo isso, até porque o roteiro explora habilmente as potencialidades das fases vividas pelos contraventores, com o acréscimo do canto do cisne, ou seja, do testemunho da derrocada provocada pelo andamento natural da existência. É revigorante ver um cineasta desse calibre ampliando concepções sobre um tema tão explorado na sua filmografia e atores dessa envergadura, em estado de graça, fazendo algo de uma potência enorme.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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