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Sinopse

Desempregado, Augusto Menezes está no meio de uma crise matrimonial por conta do alcoolismo. Ele decide se mudar com esposa e filho para uma fazenda herdada de seu avô. O que ninguém poderia imaginar é que a propriedade fosse assombrada por Couraça e Ana, escravos decididos a se vingar dos seus antepassados.

Crítica

O conceito por trás deste projeto não poderia ser mais interessante: retratar as feridas da História do Brasil por meio do suspense e terror, transformando o passado de escravidão em fantasmas perambulando literalmente pelos casarões da burguesia. Assim, o diretor Andrucha Waddington e a roteirista Fernanda Torres concebem um filme cíclico, no qual tragédias antigas estão condenadas a se repetirem inúmeras vezes, até serem resolvidas de fato – como um luto mal realizado, ou um trauma recalcado. Existe um caráter terapêutico no encontro de Augusto (Felipe Camargo) e Tereza (Carol Castro) com a herança familiar de opressão contra os negros. Em tempos de revisionismo histórico, confrontar os brasileiros ao espelho do racismo pode oferecer uma catarse muito interessante.

Apesar de tamanho potencial simbólico, os criadores estão muito mais interessados em trabalhar a atmosfera de suspense do que o acerto de contas apoteótico. Numa fazenda onde reinam a névoa ameaçadora, a trilha sonora de suspense e a presença de vultos pelo horizonte, a família é movida pela constante sensação de incômodo, desde o primeiro momento em que se mudam para a casa grande em Minas Gerais. Elementos como as sessões espíritas, os sacos de diamantes e a presença de uma instituição psiquiátrica nas proximidades mais enfraquece o tema central do que o alimenta. O cineasta privilegia os conflitos típicos da clausura (a ameaça da loucura, o medo de não ter a quem correr em situação de perigo, a possibilidade de uma invasão) ao invés do confronto brutal entre passado e presente.

Ora, o suspense não depende apenas de luz e som, mas especialmente da gradação (ou seja, a situação que se torna cada vez mais tensa, até a explosão), e neste sentido, O Juízo encontra problemas. Algumas cenas importantes se encaminham rápido demais ao desespero, a exemplo da busca pelo filho na floresta ou da decisão de abandonar a casa quando a mãe se sente em perigo. Apesar de se apoiar na estrutura clássica de O Iluminado (1980) – o pai se mudando para um casarão isolado e deserto com a esposa e o filho, até enlouquecer e ameaçar a própria família – o projeto brasileiro não desenvolve a progressão cuidadosa rumo à perda da racionalidade. Assim, algumas cenas soam abruptas, os encontros e desencontros se tornam convenientes à trama, e os coadjuvantes têm sua importância reduzida pela montagem – caso de Fernanda Montenegro, Lima Duarte e especialmente Kênia Bárbara. A casa, personagem central, não parece ocupada pela família desinteressada em preparar o espaço para a sua chegada. O trio nunca utiliza este local, reduzido à condição de cenário.

Para o elenco, o diretor efetua escolhas surpreendentes. Felipe Camargo é um ótimo ator, capaz de transmitir no olhar o misto de cansaço e delírio, porém o texto jamais permite que o alcoolismo seja abordado com o devido cuidado. Carol Castro possui uma facilidade notável em manejar diálogos, mesmo em caso de frases expositivas, porém sua prestação também se enfraquece pela oscilação violenta de humores promovida pelo roteiro. Joaquim Waddington possui um tom bruto de atuação, potencialmente interessante para o adolescente rebelde, ainda que o trabalho não seja muito polido. Já o cantor Criolo soa perdido, sem saber como trabalhar de maneira coesa a construção do corpo, dos olhares e da voz. Ele não parece ter sido suficientemente preparado para uma figura tão ambígua quanto a de seu personagem, um homem encarregado de representar toda a fúria dos escravos confrontando os tempos contemporâneos – algo que, convenhamos, representava um peso grande demais para um ator sem formação técnica.

O Juízo nunca se define ao certo em abordar o suspense psicológico e o suspense sobrenatural. Ao primeiro subgênero, falta investigação da psique humana, privilegiando o olhar dos personagens ao ponto de vista onisciente, e ao segundo, falta mesclar invisível e visível, fazer com que estes ex-escravos provoquem ruídos reais dentro da casa ao invés de simplesmente desfilarem pela paisagem. A utilização de Couraça e Ana como lembretes de um passado escravagista soa branda perto do pavor que o roteiro procura sugerir. Em permanente atenção à atmosfera, a direção prepara o espectador para um embate potente que nunca chega. Ao menos, Waddington possui a boa escolha de não separar esteticamente o real do fantástico, os mortos dos vivos, fazendo com que convivam lado a lado. No entanto, uma fábula tão carregada em termos raciais e de classe merecia que se cravasse as unhas no gênero com vigor, privilegiando o enfrentamento à polida metáfora de reconciliação através dos séculos.

Filme visto na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2019.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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