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Sinopse

A vida e a obra de Sidney Poitier, astro do cinema que se tornou uma figura essencial ao ativismo afro-americano.

Crítica

Ainda que não tenha sido comentado da forma como se poderia ter esperado, se faz necessário dar o devido valor ao falecimento do ator e diretor norte-americano Sidney Poitier, que se deu no dia 06 de janeiro de 2022. Aos 94 anos, o astro estava sem aparecer nas telas há duas décadas – seu trabalho derradeiro havia sido o telefilme Construindo um Sonho (2001), enquanto que nos cinemas não aparecia desde O Chacal (1997) – mas a trajetória que percorreu ao longo de uma carreira iniciada ainda nos anos 1940 não pode, de forma alguma, ser ignorada. O diretor Reginald Hudlin e o roteirista Jesse James Miller compreendem essa importância e promovem, através de O Legado de Sidney Poitier, um mergulho singelo, e se não invasivo, ao menos carinhoso o bastante para justificar o passeio. Pois é disso que se trata o filme: um resgate histórico, mas também afetuoso, de um homem e artista que, por ser nada mais do que aquilo que entregava ao público, mudou percepções e fez história.

Cinebiografias são passíveis de inúmeras interpretações. No caso de documentários, então, as cobranças podem ser ainda mais excessivas, vistas que envoltas por um viés de suposta obrigação de verossimilhança. No entanto, há de considerar que há, inevitavelmente, um filtro entre fato e espectador, que é quem está contando a história: ou seja, o realizador. Hudlin, produtor indicado ao Oscar por Django Livre (2012) e diretor de filmes como o doc The Black Godfather (2019) – indicado ao Emmy – e o drama Marshall: Igualdade e Justiça (2017), que recebeu uma indicação ao Oscar – além de diversos episódios de séries e telefilmes – é um cineasta negro bastante ativo, mas um nome que raramente vem à mente quando citados aqueles responsáveis pelo cinema afro-americano atual. Ao se apropriar da trajetória de Sidney Poitier, não apenas se propõe a corrigir a própria atenção que tem recebido ao longo dos anos, mostrando estar ativo e atento às causas de sua comunidade, como também se propõe a oferecer uma nova luz aos feitos e decisões daquele cujo percurso é fundamental para o entendimento de como a cultura audiovisual negra é vista nos Estados Unidos.

Ainda que nascido em Miami, Poitier passou sua infância em uma ilha das Bahamas, no Caribe, trabalhando em plantações de tomates ao lado dos pais. Quem revela isso é ninguém menos do que ele mesmo, em depoimentos feitos direto para a câmera e usados aqui com bastante propriedade. A impressão inicial, portanto, é de que este, provavelmente, será um Sidney por Sidney, ou algo do gênero. Mas não chega a ser o caso. Por mais que a entrevista recuperada pelo cineasta seja detalhada e abrangente, principalmente a respeito da origem do astro e de suas vivências e experiências antes da fama, tais relatos não vão muito além. Assim, o espectador ficará sabendo o que o motivou, ainda na adolescência, a voltar aos Estados Unidos e, principalmente, o impacto que foi a descoberta do racismo. Afinal, até então vivia em uma comunidade, como dita pelo próprio, “formada quase que 90% por pessoas negras”. Os brancos passam a fazer parte de sua vida apenas ao retornar ao continente. E o impacto de uma vida na Flórida, combinado por uma mistura de medo com perigo, logo será substituído por uma excitação crescente proporcionada pela decisão de se mudar para Nova York.

O cinema e a atuação chegaram até ele quase que ao acaso, e Poitier nunca fez questão de esconder tal fato. Porém, à medida em que a narrativa avança em sua carreira artística, depoimentos e entrevistas com amigos e colegas de profissão passam a ser fundamentais para agregar ao relato um olhar mais amplo, não só a respeito do que ele teria feito, mas o impacto destes atos em tantos outros. Sidney Poitier não foi apenas o primeiro homem negro a ganhar o Oscar (antes dele, apenas Hattie McDaniel havia sido premiada pela Academia de Hollywood, como Melhor Atriz Coadjuvante por ...E O Vento Levou, em 1939, ou seja, quase vinte e cinco anos antes dele ganhar como Melhor Ator por Uma Voz nas Sombras, de 1963), mas foi também o primeiro ator de cor a ser protagonista em um filme norte-americano, e não apenas isso, mas também a se tornar popular nas bilheterias. Títulos como O Ódio é Cego (1950), de Joseph L. Mankiewicz, Acorrentados (1958), de Stanley Kramer, Paris Vive à Noite (1961), de Martin Ritt, e Adivinhe Quem Vem Para Jantar (1967), também de Kramer, são lembrados como marcos fundamentais em sua filmografia, seja pelos prêmios e indicações recebidos, como também pela posição pioneira que se colocava na indústria cultural e pelas barreiras que rompia ao fugir de estereótipos.

Mas nem tudo são flores. Levou tempo até que o caminho trilhado por Poitier pudesse ser percorrido por outros atores negros assim como ele. Somente nos anos 1980, com o reconhecimento de intérpretes como Louis Gosset Jr. e Denzel Washington (ambos presentes entre os entrevistados), é que um sentimento de continuidade pôde ser percebido. Até então, a dúvida permanecia: seria Sidney Poitier um caso único e isolado? E, se assim fosse, quais as concessões a que ele haveria concordado e se submetido para tanto? Críticas e opositores não lhe faltaram, e Hudlin não os ignora, por mais que não se atenha a estes pontos de forma demorada. Afinal, com tanta gente interessante a seu dispor – outros com quem conversou foram Halle Berry, Barbra Streisand, Morgan Freeman, Robert Redford, Oprah Winfrey e Spike Lee, além de familiares e do grande amigo (e por vezes nêmesis) Harry Belafonte – difícil foi encontrar um equilíbrio. Os altos e baixos da relação com o melhor amigo, assim como do romance que teve com a atriz Diahann Carroll, são alguns rápidos vislumbres a respeito da intimidade de um artista que a tantos inspirou, mas do qual tão pouco se sabe. O Legado de Sidney Poitier, portanto, vem a preencher uma importante lacuna, seja para celebrar feitos e conquistas que não podem – nem devem – ser esquecidos, como também para colocar em evidência que, por trás de uma imagem de imenso sucesso, havia um homem capaz de erros e, principalmente, reconhecê-los a ponto de aprender com eles. Eis a melhor herança que poderia deixar como exemplo.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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