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Sinopse
Filho de imigrantes argelinos, Youssef Salem é um escritor que começa a experimentar o sucesso por conta de seu livro repleto de simetrias com a própria história pessoal. Mas, e se os parentes não gostarem dessa semelhança?
Crítica
O cinema está repleto de fórmulas, de matrizes reproduzidas porque deram certo em alguma medida. Melhor ainda se elas forem adequadas a vários tipos de enredos. Filmes motivados por mentiras constituem um desses modelos. Senão vejamos. A quantos histórias você assistiu em que um personagem passa a trama toda escondendo algo de pessoas próximas, essa coisa é revelada depois de muita ginástica para permanecer oculta e a verdade, uma vez vinda à tona, causa uma crise fundamental que antecede o desfecho feliz e conciliador? Essa trajetória têm um quê de moralista, pois reafirma a impossibilidade de sustentar uma lorota para sempre e defende a ideia confortável de que é preciso penar um pouco antes do encerramento feliz – exatamente porque a verdade prevaleceu. É um pouco o que acontece em O Livro da Discórdia. O protagonista é Youssef (Ramzy Bedia), autor francês de ascendência argelina que escreve um livro evidentemente baseado em memórias muito íntimas. Nele, transforma seus familiares singulares em personagens que, segundo alguns, reforçam estereótipos árabes. No entanto, o foco não está na discussão sobre a perspectiva ou no que ela carrega de potencialmente racista em virtude de uma possível auto-aversão. Trata-se de um filme sobre alguém que encontra na mentira o subterfúgio para lidar com suas questões pessoais, das profundas às mais superficiais.
Com uma pegada leve e cômica (e que lembra os filmes italianos do gênero), a cineasta Baya Kasmi mostra o protagonista brincando com chavões muçulmanos, sobretudo na construção da versão ficcional de sua família. É como quando Pedro Almodóvar reforça as tintas da passionalidade espanhola no retrato das mães rigorosas ou semelhante ao que faz Woody Allen na imagem das matriarcas judias controladoras. Falar da própria comunidade nesses termos é um modo leve de demonstrar carinho, sobretudo em virtude da consciência de resvalar em certos estigmas. Por exemplo, Youssef representa o pai como sujeito obsessivo (sobretudo com a língua francesa); a mãe como mulher sexualmente frustrada que se “alivia” na piscina; e as irmãs como homens, um briguento/agressivo e ou outro homossexual que esconde a orientação sexual. Quando encaramos sua família real, as coisas não são muito diferentes do livro impresso, ou seja, ele buscou na realidade os subsídios à ficção mais tarde super premiada. Youssef é o autor que torce levemente os fatos e as personalidades reais para elas serem mais interessantes como mentira. Tanto que um de seus irmãos não ganha equivalente literário, pois tem um cotidiano tranquilo como padeiro – não sendo uma possível vergonha para as tradições árabes defendidas pelos pais. Essa brincadeira entre ficção e realidade é um jeito de reafirmar o afeto.
Porém, O Livro da Discórdia não intensifica essas tensões entre realidade e ficção, fazendo dos atritos entre elas apenas uma maneira de validar a representação. Uma vez descoberto pelos irmãos, o protagonista tem de fazer de tudo para evitar que seu livro, O Choque Tóxico, seja lido pelos pais de comportamento super tradicional. É curioso o fato de que Youssef mantém erros gramaticais como modo de se comunicar com o pai obcecado pela língua francesa, mas luta durante quase todo o filme para o patriarca nunca colocar os olhos na história escrita. Aliás, a editora vivida por Noémie Lvovsky denuncia a contradição indicativa, evitando que cheguemos a essa conclusão por conta própria. Se há um problema narrativo nessa produção selecionada ao 14º Festival Varilux de Cinema Francês é a privação constante da autonomia perceptiva do espectador, ou seja, a estratégia de explicar tudinho e não deixar muito para a nossa perspicácia. Como quando o antigo amor de infância do escritor pergunta os motivos que o levaram a representar de um modo a perda de virgindade – “porque eu adoraria que tivesse sido assim”, responde Youssef durante um momento de sedução. É o tipo de conclusão à qual poderíamos chegar perfeitamente sem que alguém nos poupasse do sempre estimulante trabalho de pensar. De toda maneira, o filme é uma jornada interessante por fatos, invenções e tipos carismáticos.
O que afasta levemente O Livro da Discórdia dessa fórmula do filme motivado por uma mentira que, primeiro, deve ser escondida a todo custo e, segundo, precisa ser revelada para garantir o encerramento moralmente adequado, é o fato de que Youssef não acredita realmente ser preciso esclarecer tudo para se conciliar com os seus e consigo mesmo. Aliás, o desfecho decorre de uma soma calculada entre revelar verdades (especialmente à mãe) e criar uma nova e imensa mentira para melhor se adequar à realidade. O desfecho não está falando necessariamente da renúncia em prol da família, mas da estratégia de utilizar a ficção a fim de torcer a verdade para torna-la mais palatável e agradável aos seus. Mas, essa mensagem leve é secundária, ainda que importante como ferramenta para quebrar um dos preceitos desse modelo utilizado para contar a história. O principal do filme está nessa universalidade das relações familiares, no jeito como o protagonista, seja ele árabe ou não, sente dificuldade para lidar com as expectativas dos pais que, por sua vez, são orientados pelas tradições religiosas. No entanto, Baya Kasmi não torna irrelevantes a origem e a cultura dos personagens, mantendo-as sempre no horizonte nessa comédia agridoce sobre como nem sempre a verdade é o melhor caminho, ainda que na mentira tampouco possamos encontrar as respostas definitivas. Talvez o caminho seja as misturar bem.
Filme visto no 14º Festival Varilux de Cinema Francês
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