Crítica
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Sinopse
Marc é um cineasta paranoico que não suporta ver o seu novo projeto desfigurado pelos produtores. Com a ajuda de sua montadora, ele consegue sequestrar o material bruto e fugir para a casa de uma tia a fim de garantir a sua visão.
Crítica
O cineasta Michel Gondry está de volta, agora mostrando ser perfeitamente possível fazer um filme divertido tendo como protagonista alguém insuportável. Marc (Pierre Niney) é um diretor “podado” pelos produtores logo no começo de O Livro das Soluções. Seu mais novo trabalho é hermético e certamente decepcionou (e muito) o investimento milionário dos “engravatados” que reivindicam assumir o projeto dali em diante para tentar salvar alguma coisa. Mas, Marc é astuto, um tanto porque não tem muito senso do ridículo, então resolve literalmente roubar a sua obra e, na companhia de uma pequena (e paciente) equipe, se refugiar na casa de sua tia, Denise (Françoise Lebrun), para enfim terminar a montagem e preservar a sua integridade artística. Ao chegar, simplesmente descarta medicamentos que fazem parte de seu tratamento psiquiátrico, o que certamente abre o caminho para as crises de ansiedade, a obsessão fora do comum, a agitação prepotente, entre tantas (inúmeras) outras manifestações irritantes de sua personalidade. Gondry faz um retrato bastante autocrítico desse sujeito intragável que sustenta a pose de grande realizador, mesmo provavelmente tendo somente talento e um ego enorme. Autocrítico, pois a trama é parcialmente baseada na sua experiência durante a pós-produção de A Espuma dos Dias (2013), incluindo nisso a excentricidade de reger uma orquestra com o corpo.
Marc é o protótipo do tirano infantil, aquele que reivindica a todo instante atenção e fidelidade irrestrita da equipe. Se a abordagem de O Livro das Soluções não fosse abertamente cômica, o filme provavelmente seria um pesadelo protagonizado por alguém absolutamente odioso. No entanto, ainda que não alivie na representação de Marc como um babaca, Michel Gondry atribui a ele uma aura de fragilidade encarregada de evitar barreiras que o anulem. Desse modo, mesmo inequivocamente insuportável, Marc também solicita a todo momento que o amemos, apesar de tudo. De certo modo, as personagens que o rodeiam têm esse entendimento de que não adianta abandoná-lo, embora Gondry não deixe claro os motivos que levam montadoras, produtoras e assistentes demorarem tanto a dar um pé na bunda do protagonista. Marc é inconveniente, acorda seus colaboradores no meio da noite porque teve uma inspiração que não pode esperar, se atola cada vez mais num manancial de pretensões megalomaníacas – como sustentar a ideia de um filme praticamente experimental com mais de quatro horas de duração que parte de uma pretensão comercial. A escalada de absurdos é grande ao ponto de duvidarmos se Marc terá algum limite pela frente. Denise é a amiga de todas as horas, a dona de uma paciência de Jó, que oferece o ombro e a compreensão para dar suporte ao realizador.
Tendo em vista que estamos assistindo a um filme de Michel Gondry, pode-se apostar que em algum momento a sua criatividade visual dará as caras. E isso acontece tardiamente em O Livro das Soluções, especificamente quando Marc se dirige em stop-motion para o sofá ao lado da cama onde dorme a mulher por quem está enrabichado. Os dois primeiros terços do longa-metragem são desprovidos dessa artesania autoral, então construídos basicamente em torno do acúmulo de situações que testam a serenidade e o equilíbrio dos coadjuvantes. Pierre Niney está excelente na pele desse sujeito com crises constantes de estrelismo, cuja natureza ridícula e prepotente geralmente cria momentos bastante engraçados. Toda a sequência envolvendo a sua ideia de propor a Sting que toque gratuitamente na trilha sonora do filme é caracterizada por essa graça bastante peculiar – com o essencial toque irônico do sucesso improvável do plano em princípio estapafúrdio. Há coisas que ganham pouco desenvolvimento (e, por consequência, importância), como o fato de Marc aceitar momentaneamente o cargo de prefeito da localidade, uma vez que o sujeito eleito precisa se afastar para cuidar da esposa doente. Toda essa situação existe somente para a tola cena da inauguração do salão de beleza, muito pouco em se tratando dos disparates de Marc – alguns são recompensados, outros geram constrangimentos regulares.
Michel Gondry poderia mergulhar um pouco mais fundo na procrastinação de Marc, bem como na tendência de começar projetos paralelos tendo a pós-produção do seu filme em suspense. O último terço também é um pouco apressado, com situações acontecendo providencialmente, vide a aproximação de Gabrielle (Camille Rutherford) e, principalmente, a sua mudança abrupta de posicionamento diante desse sujeito destrambelhado que a cortejou sem sucesso até ali. De toda maneira, O Livro das Soluções traz uma visão singular do processo criativo, enfatizando de modo evidentemente caricatural o limiar nem sempre muito bem definido entre a genialidade e a mais pura pretensão. O assistente que tosse é uma das gags utilizadas com sabedoria, não exageradamente ao ponto de perder a graça, mas tampouco esporádica demais (o que poderia tirar o seu timming). Outro ponto que passa batido no longa é o fato de Marc estar cercado de mulheres, de ser um sujeito despótico cuja tirania é direcionada principalmente ao recorte feminino do seu entorno. Gondry também deixa a questão psiquiátrica um pouco solta, como um elemento contextual que justifica superficialmente certas coisas, mas nunca recebe a devida atenção. Contudo, o saldo é positivo pelo aspecto engraçado emanando desse opressor ridículo.
Filme visto durante a 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (2023)
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