float(62) float(18) float(3.4)

Crítica


5

Leitores


18 votos 6.8

Onde Assistir

Sinopse

Libby acaba de perder o marido num acidente de carro. Em dificuldade financeira, ela tenta morar com a mãe, mas as brigas frequentes entre ambas tornam a convivência impossível. Libby e os dois filhos pequenos se mudam para a fazenda da tia Jeane. A viúva acostumada à cidade precisa lidar com a rotina no campo, enquanto sente que possui uma ligação profunda com aquele lugar. Um fazendeiro da região ajuda Libby no processo de adaptação à nova vida.

Crítica

Libby (Leslie Bibb) acaba de perder o marido num acidente de carro, e enfrenta graves dificuldades financeiras. Entretanto, o espectador nunca verá imagens deste homem, ou qualquer indício do relacionamento do casal. James (Josh Duhamel) foi abandonado pela esposa, que sofreu um derrame, e hoje passa os dias cuidando da paciente. Jamais temos ideia da aparência da mulher, nem do afeto desenvolvido por eles ao longo do tempo. Libby nunca viu fotos de sua infância, o que lhe deixou marcas na vida adulta. A tia Jean (Nora Dunn), que acolhe a viúva e as crianças após o acidente, possui uma casa segunda dentro de terreno, cuja existência demoramos a descobrir. O Marido Perdido (2020) não representa apenas o desaparecimento de pessoas, mas também de imagens. Para um filme inteiramente focado nas cicatrizes do passado (literalmente, no caso de duas personagens), a narrativa surpreende ao se situar num eterno presente. Libby abandona a cidade para viver no campo, pelo visto sem deixar qualquer amiga ou vizinha na cidade de origem. A diretora Vicky Wight trabalha em constante processo de recalque, jogando para baixo do tapete a poeira que insiste em sujar a casa.

Esta construção faz com que o espectador tenha acesso às informações necessárias enquanto permanece distante da carga afetiva relacionada a elas. Somos avisados das mortes, acidentes e tragédias dentro da família, porém sabemos pouco a respeito da tristeza, raiva e remorso que talvez movimentem os personagens após estes eventos. Exceto por uma breve menção, as crianças não perguntam pelo pai, e os cuidados com a ex-esposa adoecida ocupam uma parte discreta da rotina do fazendeiro. Neste filme, esconde-se qualquer aspecto sujo e feio do luto. Em paralelo, sequências de difícil execução são simplesmente ignoradas. Sem ter o que fazer com o irmão pequeno, o roteiro some com o garoto durante a maior parte da trama. Sem saber como filmar a ordenha dos animais, a câmera decide não fazê-lo. Uma grande festa é organizada sem esforços, num simples corte da montagem, do mesmo modo que Libby, a mulher acostumada à cidade, se converte em Libby, a fazendeira especializada em bichos, do dia para a noite. A diretora se apropria do luto, tema que depende diretamente da percepção de tempo, para oferecer uma dinâmica sucinta e pragmática.

Wight demonstra alguma ambição cinematográfica aqui e acolá, escapando pelas frestas desta produção doméstica e domesticada. Quando descobre o belo lago da região, um movimento panorâmico mimetiza o olhar da heroína, porém o deslizar pouco fluido da câmera se torna um desserviço à produção. O café da manhã da tia Jean é captado por um giro de 360º dentro da cozinha, no entanto, as lentes e a iluminação soam inadequadas ao espaço estreito e aos gestos da personagem. Exceto por estas cenas raras, o drama se contenta com o imaginário popular do romance: encontros ao pôr do sol, beijos roubados em público, uma canção romântica sussurrada ao ouvido, abraços inesperados quando os pombinhos ficam presos na cozinha, flashbacks em câmera lenta e cor sépia, planos aéreos impessoais e trilha sonora melosa, sobretudo o country tradicional. Embora acene ao possível progressismo no início (as famílias são controladas por mulheres sozinhas), o roteiro logo se acomoda à ideia de que a solução para um coração partido se encontra na descoberta de outro homem para substituir o anterior. James se torna um namorado em potencial, uma figura paterna carinhosa e um protetor contra os ataques das mulheres invejosas da região. Ele será requisitado quando o “trabalho pesado” é necessário: intimidar um garotinho na escola, consertar um portão emperrado. Libby aprende a ser firme com a vida do campo, porém até certo ponto: alguns serviços são reservados aos homens.

No papel principal, Leslie Bibb demonstra recursos limitados para lidar tanto com o drama quanto com os breves instantes de humor. Cenas mais exigentes, como o desfecho do baile, o choro no banheiro e o confronto com a mãe exigiriam certa ambiguidade nas expressões que a atriz se mostra incapaz de proporcionar ao filme. Na figura do caubói de bom coração, Josh Duhamel cumpre satisfatoriamente o papel mais associado mais à aparência do que aos sentimentos (ele é descrito como “o gostosão” pelas mulheres da cidade). A surpresa vem de Nora Dunn, humorista de prestação excepcional no papel dramático. Felizmente, a tia Jean ocupa parte considerável da trama, deixando claro o abismo que a separa dos colegas de elenco. Dunn compõe uma mulher capaz de transmitir dureza e ternura simultaneamente, enquanto sustenta o corpo e a aparência de uma personagem independente e generosa, ainda que distante da imagem materna tradicional. Ao contrário da trajetória previsível de Libby (que sai do pior cenário possível rumo à felicidade e ao amor romântico), Jean possui transformação discreta, permitindo o trabalho de nuances por parte da atriz. É uma pena que o cinema aproveite tão pouco o talento de Nora Dunn.

Apesar da familiaridade que domina cada imagem, O Marido Perdido possui algumas qualidades dignas de nota. Vicky Wight situa a produção num patamar acima dos lacrimosos filmes do Hallmark e das adaptações de Nicholas Sparks, enquanto evita o subtexto religioso que ameaça invadir a narrativa, mas permanece em segundo plano (vide a canção folk sobre Jesus). Esta não é uma história de choros fáceis – até a trilha sonora se faz mais discreta do que a média das produções do gênero. Passado o primeiro terço da história, a exploração cinematográfica da beleza natural também se faz discreta. O filme caminha num interessante meio termo entre o drama de facilidades, visando o público amplo dos serviços caseiros de streaming, e o projeto que se leva a sério, enquanto obra dotada de ambições artísticas reais. O resultado nem sempre está à altura de suas promessas, porém permite vislumbrar o bom filme que poderia ter sido caso escolhesse melhor o elenco e evitasse diálogos fáceis a exemplo de “Somos feitos de magia e resiliência”. Ao final, é saudável que o cinema familiar tateie seu caminho neste grande deserto entre o romance televisivo e o filme “de arte” selecionado em festivais.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *