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Crítica


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Sinopse

Um jogo de cena utilizado para imaginar realidades num mundo em que o isolamento tornou a arte impossível e o artista uma figura inútil. Uma conversa que passa pela natureza no ofício de atuar, fake news e pelo Brasil atual.

Crítica

Todo artista é um poeta. E, segundo o poeta português Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente”. Tendo em vista esse elo umbilical entre artista e arte – tão intenso e essencial que provoca uma indefinição profunda entre genuinidades e fingimentos –, o ator/diretor Caco Ciocler propõe um instigante jogo de cena em O Melhor Lugar do Mundo é Agora. A partir dele o realizador instiga reflexões ferinas e bem-humoradas sobre o ofício de atuar. De quebra, pensa a respeito do momento histórico no qual está inserido. E a ponderação desse presente começa no aspecto formal. Os atores são entrevistados como se estivessem num documentário captado remotamente, em suas respectivas casas (será?) por conta da pandemia da Covid-19. Desde que o novo coronavírus impôs distanciamento social, parte considerável das interações está acontecendo de maneira virtual, basicamente por meio das telas de computadores, celulares e outros dispositivos. Pensando nesse hoje muito específico, Ciocler costura as conversas de um elenco heterogêneo sem quase nunca oferecer o contraplano, ou seja, mantendo a imagem fixa nos seus interlocutores. O que poderia se tornar cansativo (mesmo num filme com pouco mais de uma hora) acaba sendo um processo delicioso de contato com subjetividades em meio a investigações acerca da complexidade do existir agora. As perspectivas são interligadas pela ótima montagem de Caroline Leone.

Num de seus principais filmes, Verdades e Mentiras (1973), o cineasta norte-americano Orson Welles coloca em xeque a determinação do que seria essencialmente genuíno. A reprodução fiel de um quadro famoso é menos bela por não ter necessariamente uma "originalidade"? A capacidade do “copiador” não seria um talento a ser considerado, às vezes para além daquele do "criador"? Até que ponto vai o conceito de inventividade, tendo em vista que somos atravessados por culturas que nos precedem? Esses são questionamentos possíveis no longa em que Welles se veste de ilusionista para reverenciar a ilusão. O Melhor Lugar do Mundo é Agora se manifesta de maneira bem menos estilizada. Caco Ciocler não assume o protagonismo e tampouco chama para si o papel de criador de verdades e mentiras (em que pese uma intercambialidade). Ele conversa com colegas de experiências e atuações bastante distintas, “extraindo” deles depoimentos sobre tópicos bem variados. Uns falam das dificuldades passadas no isolamento (sem mencionar a pandemia), outros divagam a respeito de processos de ensaios, influências, o papel da arte como acesso para lugares inesperados, as diferenças técnicas entre as expressões de felicidade e da tristeza, etc. Por mais aleatórios que pareçam todos esses assuntos ventilados, eles são consistentemente encadeados e atrelados.

É sedutor estabelecer alguns graus de comparação entre O Melhor Lugar do Mundo é Agora e Jogo de Cena (2007), obra-prima de Eduardo Coutinho calcada numa investigação profunda (também de aparência simples) sobre a complexidade dos gestos de atuar. No entanto, o filme de Caco Ciocler não está tão preocupado em instigar o espectador quanto ao reconhecimento das fronteiras entre ficção e documentário. Neste filme selecionado para a 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo o ator/diretor parece mais disposto a questionar subliminarmente se essas fronteiras existem no fim das contas, se tudo, absolutamente tudo, não passa de uma doce ou de uma amarga ficção. Especialmente nos minutos finais, ele solta um pouco as rédeas e evidencia a dramatização prévia por trás de manifestações que parecem genuínas. No entanto, faz isso sem fechar portas ou solucionar enigmas. Uma vez tendo ciência de estarem sendo filmados, de participarem de um projeto audiovisual com um corte específico, não seriam os atores automaticamente impelidos a criar corpos cênicos? Portanto, por mais que um processo de entrega à câmera seja despojado de afetações, não seria ele inevitavelmente afetado por essa consciência intrínseca ao ato criativo? Esses questionamentos instigadores flutuam entre as conversas que geralmente têm claras pegadas de monólogos confessionais.

Este filme se diferencia de Jogo de Cena, além dos motivos citados anteriormente, por não estar apenas preocupado com o aspecto artístico. O longa começa com a reprodução de uma das tantas asneiras ditas pelo atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, neste caso desqualificando a arte. Então, é de se esperar um substrato político no discurso embalado numa estética de zoom. Gradativamente, em meio a discussões técnicas, históricas e existenciais sobre o ofício da atuação, Ciocler deixa escapar resquícios de enunciados infelizmente comuns ultimamente nas redes sociais. De modo sarcástico, temos defesas do porte de armas como “essencial forma de revide” e brincadeiras concentradas com uma visão ignorante acerca de mecanismos estatais de fomento cultural. Carregando implicitamente a máxima proferida pelo protagonista de O Bandido da Luz Vermelha (198) – “Quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha e se esculhamba” –, Caco Ciocler e sua trupe de atores/co-roteiristas zomba das mentiras atreladas à Lei Rouanet e de toda sorte de lugares comuns atrelados à viabilização financeira da arte. Desse jeito, "esculhamba" com a retórica de quem esculhamba o Brasil atual. Não à toa, a única cena off-zoom do filme é o vislumbre de um teatro em ruínas, provavelmente um desejo de Jair Bolsonaro e seus asseclas, tendo em vista seus constantes ataques à arte e à cultura. O Melhor Lugar do Mundo é Agora medita sobre arte, passado auspicioso e presente angustiante.

Filme visto online na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2021.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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