O Mês que não Terminou
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Francisco Bosco, Raul Mourão
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O Mês que não Terminou
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2019
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Brasil
Crítica
Leitores
Sinopse
Como o Brasil chegou ao atual cenário político? Os diretores partem do mês de junho de 2013, quando manifestações populares tomaram as ruas, para compreender as relações entre direita e esquerda, entre pressões populares e articulações políticas.
Crítica
O cinema brasileiro tem fornecido nos últimos anos uma quantidade expressiva de documentários buscando compreender a transformação da política nacional a partir de junho de 2013. Este foi o mês em que as manifestações de rua, inicialmente contra o aumento das passagens de ônibus, se transformaram num grande movimento antissistema e, em última instância, defensor de pautas autoritárias. Junho: O Mês que Abalou o Brasil (2014) e Operações de Garantia da Lei e da Ordem (2017) são alguns dos projetos que, apesar da boa produção e da complexidade política, têm como ponto de partida a explicação dos fatos a um espectador que se estima ignorante no assunto. Explica-se a olhos virgens, seja por supor que o interlocutor não viveu esta experiência por si mesmo, seja por pressupor a comunicação com um eventual espectador do futuro. Estes filmes procuram, portanto, funcionar enquanto documentos didáticos, capazes de destrinchar o nó da complexidade sociopolítica nacional. Os diretores releem a trama por um ponto de vista acessível, no papel de um professor paciente. Nestes casos, o objetivo de compreensão se situa acima da reflexão.
O Mês que Não Terminou (2019), dirigido por Francisco Bosco e Raul Mourão, surpreende ao iniciar pela análise. Ao invés da narração gentil explicando o que aconteceu, quando e onde, a voz de Fernanda Torres fornece desde o início uma análise posterior aos fatos, situando-os num único contexto, relacionando 2013 com 2018, explicando a guinada do centro-esquerda à extrema-direita. Ao invés de acompanhar os fatos no presente, em tom de urgência, o projeto se preocupa em retratar os fatos no passado. O distanciamento crítico reflete no posicionamento político evidente de seus criadores: contra a busca por “neutralidade”, ou pela utópica (e questionável) simetria entre todos os pontos de vista, assume o viés progressista de uma esquerda moderada. Os cineastas dialogam essencialmente com pensadores críticos ao atual governo e ao golpe (renomeado “parlamentada”) de 2016. Alguns intelectuais de direita compõem o escopo da conversa, permitindo que o discurso seja ao mesmo tempo diverso e limitado às esferas democráticas. Nenhum filósofo bolsonarista, ou adepto às teorias da conspiração, se introduz no debate. Bosco e Mourão esclarecem o grupo de pensamentos que consideram dignos de atenção, mesmo que não concordem com todos eles.
O documentário substitui o caráter descritivo pelo argumentativo. Rememorando brevemente os fatos, parte para ideias mais avançadas na discussão política: a “passagem da cultura à política no imaginário brasileiro”, o fenômeno da cooptação dos movimentos populares pelas direitas, a figura de Bolsonaro representando o ideal retrógrado do pai autoritário capaz de colocar ordem no caos, a dificuldade de regulamentar o conteúdo veiculado pela mídia e pelas redes sociais, os erros táticos do PT até a queda de Dilma etc. Ou seja, a premissa se mune de hipóteses a serem comprovadas pelo material de arquivo e pelos depoimentos de figuras como Pablo Ortellado, Laura Carvalho etc. As conversas são claras e ao mesmo tempo complexas: ironicamente, o projeto se associa às vozes mais acostumadas ao jornalismo periódico para construir um documentário que se distancia do aspecto de reportagem. O principal revés desta abordagem seria a sua verborragia: fala-se muito no filme, especialmente a narradora. Fernanda Torres possui textos longuíssimos, ocupando mais tempo de projeção do que os sociólogos, historiadores e filósofos convidados. Em outras palavras, o documentário tem muito mais a dizer do que ouvir, como se as suas ideias estivessem prontas, esperando serem referendadas pela opinião de terceiros.
Um mérito notável da direção se encontra no trabalho com metáforas e demais recursos poéticos capazes de ilustrar as transformações políticas sem traduzi-las. Os cineastas introduzem curiosas imagens de equilíbrio precário (esculturas de metal posicionadas sobre garrafas), de instabilidade (as boias no mar), de absurdo (os móveis carregados por pessoas em campos de arroz) e mesmo de mobilidade não transformadora (a descida pelos andares de um edifício, todos idênticos e igualmente vazios). Estes interstícios silenciosos, ou pelo menos desprovidos de diálogos, contribuem a absorver a sobrecarga verbal, e de certo modo desdobrá-la. Cria-se uma fricção entre som e imagem, uma completude cujo sentido se produz apenas na cabeça do espectador, através das sugestões da montagem. A edição não se preocupa apenas com fluidez, ritmo e concatenação de ideias, mas também em produção autônoma de sentido. Mesmo que o documentário fragmente a narrativa em capítulos para organizar o raciocínio, as metáforas resultam muito mais eficazes na tarefa de expandir sensações e sentidos das falas. Costuma-se pensar que a política seja inimiga da poesia, ou que a violência dos nossos tempos seja incompatível com a leveza das formas e das ideias. Os cineastas comprovam a potência destas associações dentro de num contexto que se prestaria tão facilmente à articulação referencial.
Ao final, O Mês que Não Terminou utiliza diversas ferramentas do conhecimento à disposição (da sociologia à psicanálise) para compreender, retrospectivamente, como o Brasil chegou no atual governo. Os diretores possuem formidável poder de síntese em cerca de 100 minutos, evitando simplificar os conceitos para facilitar a assimilação. O resultado seria ainda mais potente caso as imagens de arquivo possuíssem a mesma força dos trechos metafóricos, ou se os cineastas estivessem abertos à surpresa na escuta de seus interlocutores. Ora, o filme comprova exatamente os preceitos anunciados no início, com argumentos sólidos e raciocínio extenso, porém sem permitir arestas na comunicação. A direção demonstra rígido controle sobre sua exposição, não permitindo ser contradita. Há pouco do acaso, da espontaneidade e do vigor juvenil de Junho: O Mês que Abalou o Brasil e Operações de Garantia da Lei e da Ordem. Bosco e Mourão se situam num momento pós-indignação, como se lhes coubesse recolher os cacos e imaginar possibilidades de reconstrução. É possível que estas formas de cinema convirjam e se completem: a imagem da urgência com a imagem do distanciamento; o ponto de vista interno com a análise externa; a impressão de que a sociedade precisa se rebelar e a ideia de que lhe compete, primeiro, compreender a si mesma.
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