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Sinopse

Um ex-soldado atormentado pelos horrores da Segunda Guerra Mundial encontra um porto seguro num líder carismático. O homem está fundando um novo culto, uma seita de contornos radicais.

Crítica

Há algo de estranho em O Mestre. O que é? Talvez seja a capacidade de sustentar uma trama, notável já de partida, sob uma história mais que ficcional: ficcionalizante. Ele vai trazer à baila a questão da Cientologia (seita? religião? culto? pouco importa), não precisamente através da História de sua fundação, mas antes perscrutando seus semelhantes, seus membros e algo de sua esquematização funcional, isto é, os mecanismos e a fruição do poder e do controle – do corpo, mas sobretudo da mente. Aqui: A Causa. O dualismo é parte das concepções filosóficas dos livros de Lancaster Dodd (Philip Seymour Hoffman), ou seja, a mente é, sim, separada do corpo, sendo que uma (a mente) controla a outra (o corpo) enquanto entidade física. As reuniões organizadas por Dodd trabalham esse dualismo e seus sermões aproximam as vontades e os desejos dos ouvintes a essa durabilidade do espírito, essa tensão da existência, algo da corporificação das sensações, dando voz a quem quer ouvir coisas e senti-las, mais que meramente compreendê-las. O corpo, portanto, em consonância com o espírito, representa a substância necessária para as operações de Lancaster Dodd diante de seus fiéis. O Homem é superior a todos os outros animais.

Ora, ninguém mais desafiador para as percepções da Causa que o marinheiro Freddie Quell (Joaquin Phoenix) que, recém-terminada a Segunda Guerra, tenta reestabelecer suas atividades sociais. Após uma série de acontecimentos, entre eles a fuga do sanatório para ex-combantes, Freddie acaba a bordo de uma pequena embarcação. Lá, conhece Dodd, que vê em suas atitudes uma cobaia perfeita para experimentar seus métodos “psicológicos” de análise. Mas tudo parte do olhar do Outro. É Freddie quem nos empresta o olhar e é a partir de seus encontros com outros personagens (nas reuniões, nas sessões, nos sermões, nos jantares, no flerte, nas festas, nas brigas) que observamos o desenrolar dos fatos. O estranho, que já aludimos no início, é o olhar do Outro. O filme de Paul Thomas Anderson coloca o dualismo em perspectiva: o corpo de Freddie é desgovernado e sua mente desloca qualquer preconcepção estagnante das imagens. Ele tem o corpo (o jeito de andar, o falar e mesmo em relação a qualquer movimento que realiza) e a mente estabelecidos como irremediáveis narrativas estéticas e dramáticas. Por aí, há muito a se dizer sobre O Mestre.

Em vez de construir o personagem, Joaquin Phoenix faz o oposto. Apropria-se de tal forma da imagem de um corpo complexo e estratificado, fragmentado, repleto de nuances e de desejos, de sexos, de faces, de tempos dramáticos, etc. A um só tempo, ele se move de maneira esquelética, mas é também cheio de presença, de traços, de cicatrizes, de prepotência, de embalos, de swings. Combina a virulência do físico com a representação formal do imaginário. A expressividade do ator reflete na tônica que move o filme, na combinação do simbólico com o real (há um choque aí), que é essa conexão com a memória (o passado – imaginário) a qual ele é submetido nas sessões. Numa outra atividade ele é submetido a uma bateria de contatos com as extremidades da casa onde o grupo realiza seus ritos. Freddie precisa tocar na janela e dizer o que sente, depois ir até a parede do outro lado da sala e descrevê-la. Mas ele não deve falar da coisa em si, do material de que é feita, mas sim de sensações. O excesso de seu corpo deforma o drama dessas sensações vazias (vocês não sabem o quão difícil é dizer como é um vidro) no mesmo sentido em que faz dele um espectro muito mais belicoso de investigar. Por esse corpo os outros se curvam: o beijam ou dele se afastam. Mas ele precisa vencer. E vence. Um delírio.

Por um lado o filme vai deixando marcas de uma crescente sensação de reviravoltas infindáveis, o que é muito recorrente em Paul Thomas Anderson, essas atmosferas dúbias (como em Jogada de Risco, 1996), esses espaços tortuosos e disputáveis (como em Sangue Negro, 2007), o confinamento do espírito (a exemplo de Magnólia, 1999), coisas que no final já poderiam ser capazes de esvaziar as imagens de seus sabores e de suas cores – e aí desvirtuando o assunto de si (sua forma, que lhe é cara; sabemos que seus filmes são um pouco narcisistas) para o espetáculo publicitário. Por outro, está plenamente satisfeito com o delírio e o meandro de sua estética, com toda a beleza inexorável de seus planos, seus eixos, panorâmicas e plongées. O Mestre expande o olhar do espectador para ser engolido por ele, mas não sem antes ser esquadrinhado. Filme que está ali, acessível, embriagado por uma busca. Busca de quê? Pelo quê? Veremos.

Em O Mestre, o plano-sequência já não é mais o movimento (lembrem-se de Boogie Nights, 1997), mas sim a duração estética e textual do plano, causadora do suspense que absorve o espectador, que catalisa a real intensidade da coisa para dentro e então a espalha pela tela quando está prestes a transbordar. O número de personagens é também menor, o mote já é mais localizado, eficiente. Questão de método. O “sangue” que percorre os olhos de Freddie na sequência da primeira análise é ele mesmo símbolo e nostalgia: símbolo da duplicidade do pensamento, da agonia desta prisão que é o mundo e nostalgia da incapacidade de narrar. Seus olhos só poderiam sangrar lágrimas se estivessem envenenados, e eles estavam. Seu veneno sempre foi mais o passado que o presente. Sua luta é ao mesmo tempo sua ruína – e a de Dodd também.

O cético que faz perguntas demais durante uma sessão, avançando sobre as ideias de Dodd de que a Terra tem trilhões de anos e não apenas alguns bilhões ou a própria crente que questiona a alteração sutil de uma palavra do Livro I para o Livro II. Mudam-se as palavras, mudam-se as ideias, supõem-se. E a mulher (Laura Dern) percebe a hesitação do Mestre no momento da resposta. Ora, a linguagem sempre se oferece a quem a persegue. Quando questionado a respeito dessas ideias (são fatos, ele diz), Lancaster se exalta para logo silenciar o oponente. Se por um lado o filme coloca de lado a oposição entre fé e razão (o que faz bem), não esgotando muito a própria falsidade da questão, por outro se envolve intimamente com as coisas no calor delas, na emoção mesma em que elas fluem e existem. O Mestre vai terminar, como Sangue Negro, com um encontro definidor das coisas. Tudo novamente.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do RS. Edita o blog Tudo é Crítica (www.tudoecritica.com.br) e a Revista Aurora (www.grupodecinema.com).
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