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Se distanciando do tom mais solene dos épicos grandiosos pelos quais se tornou conhecido, como Adeus, Minha Concubina (1993) – que lhe valeu a Palma de Ouro em Cannes – ou O Imperador e o Assassino (1998), o chinês Chen Kaige adere ao aspecto mais fantasioso da cultura de seu país neste O Mistério do Gato Chinês. É no campo das lendas, um terreno não totalmente desconhecido – vide o caso de seu A Promessa (2005), que já explorava abertamente o lado mais fabular e menos austero dos dramas históricos locais – que o cineasta mergulha, fazendo-o de modo integral e aproximando-o do trabalho de nomes como o de Tsui Hark. Ainda que deixando de lado o elemento das artes marciais, e não demonstrando a mesma habilidade para transitar entre o factual e o lúdico, Kaige trabalha sobre uma premissa que poderia muito bem servir a uma das aventuras do personagem Detetive D comandadas por Hark.
Aqui, a trama acompanha uma investigação conduzida pelo monge japonês Kûkai (Shôta Sometani), especialista em exorcismo chamado à China na tentativa de curar o Imperador, que sofre de um mal misterioso, e pelo escrivão real, com aspirações à poesia, Bai Letian (Xuan Huang). A carismática dupla, ainda que tenha seus dilemas particulares pouco desenvolvidos, cumpre bem o papel de guia na busca pela verdade por trás da peculiar morte do governante e do que parece ser uma maldição lançada por um gato demoníaco, que vem deixando um rastro de mortes em sua jornada de vingança. Durante o curso da investigação, os eventos acabam se mostrando ligados a uma lenda do período da Dinastia Tang que trata do destino de Lady Yang, a concubina do Imperador, mulher de beleza e bondade imensuráveis.
Já na cena inicial, Kaige rompe com qualquer possibilidade de realismo, apresentando o encontro entre a esposa do chefe da guarda real e o felino preto falante que se move magicamente pelo espaço e devora os olhos de um peixe ainda vivo. Essa aceitação imediata do fantástico, tão comum na cultura oriental e que encontra maior resistência na ocidental, é imprescindível para a apreciação de um longa que caminha às margens da total abstração do real, propondo um jogo de espelhos, um encadeamento de ilusões, que se renova a cada pista exposta sobre as origens e motivações da criatura sobrenatural. A adesão plena à fantasia torna também os efeitos visuais, por vezes pouco convincentes – outro fator bastante corriqueiro no cinema asiático – mais toleráveis, especialmente na concepção do gato do título. Afinal, dentro desse universo ilusório, quanto mais cartunesco, melhor. Mesmo que isso possa gerar um notável contraste com o apuro da reconstituição de época detalhada e da suntuosidade de figurinos e direção de arte.
Essa aura exagerada, kitsch, e de toques bem-humorados, constitui o charme do longa, algo com o qual Kaige parece se deleitar, abusando dos movimentos de câmera, dos planos em gruas e dos travellings para captar cada ângulo, cada cor, cada textura das sequências cerimoniais de canto e dança. A imersão na ilusão, contudo, acaba sendo também a fraqueza da obra, pois no centro de tudo ainda há um mistério a ser solucionado, e este, ainda que inicialmente sustentado de modo satisfatório, aos poucos perde sua força em meio a todas as possibilidades criadas pelo fator insólito. Com toda imagem e fato exposto podendo ser apenas imaginário, Kaige abusa das reviravoltas, que terminam se acumulando sem impacto, e o interesse em tentar desvendar o caso se esvai gradativamente. Some-se a isso o desenrolar intrincado da narrativa, que inclui todo um arco – apresentado em flashback – de intrigas palacianas repletas de atitudes e resoluções pouco compreensíveis.
Em seu ato final, O Mistério do Gato Chinês ainda se desvia da leveza até então instaurada para apostar num tom romântico açucarado em que a mão de Kaige pesa no sentimentalismo. O que poderia ser poético, como as aspirações de Bai Letian – ou os textos originais do escritor Li Bo sobre a beleza de Lady Yang – termina novelesco, com um excesso de sequências de sacrifício embaladas por uma trilha sonora opulenta. De todo modo, o trajeto até tal desfecho ainda guarda momentos de encanto fantástico e de deleite visual suficientes para que essa percepção negativa não se imponha totalmente sobre o conjunto.
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