Crítica
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Sinopse
Gloria acaba de nascer numa família de classe média-baixa. Apesar da felicidade geral, todos têm receio das dificuldades financeiras em torno do bebê. A mãe Mathilde é explorada na loja onde vende roupas, o pai Nicolas sofre um ataque nas ruas que o impede de trabalhar. O avô e a avó também não conseguem contribuir com recursos financeiros. Quando Daniel, avó de Gloria, sai da prisão, a dinâmica familiar se transforma por completo.
Crítica
A premissa deste drama se resume no provérbio segundo o qual é preciso de uma aldeia inteira para cuidar de uma criança. O Mundo de Gloria (2019) se inicia literalmente com o começo da vida, no caso, o parto do bebê mencionado no título. A câmera registra um nascimento real, focando na criança ainda coberta de fluidos, antes de tomar um banho redentor, em câmera lenta – espécie de batismo, interessante para um diretor avesso à religião. Gloria é a recém-nascida em torno da qual toda a história gira: por causa dela, os pais precisam trabalhar ainda mais, entregando-se a empregos humilhantes e mal remunerados. A criança muda a vida dos avós – uma faxineira e um motorista de ônibus em Marselha – que adotam novos horários para ajudarem a cuidar da neta. Ela também modifica a rotina dos cunhados, vizinhos e amigos. Como resolver o problema de lógica segundo o qual os cuidados de uma recém-nascida implicam na necessidade de mais dinheiro, que leva à necessidade de trabalhar mais e, portanto, ter menos tempo para cuidar da criança? “As regras estão erradas”, comenta uma personagem, referindo-se ao funcionamento social como um todo.
Robert Guédiguian baseou sua carreira num cinema da generosidade, da solidariedade e da união entre marginais. “Laços de sangue não querem dizer nada”, insiste Richard (Jean-Pierre Darroussin), padrasto de Mathilde. O diretor reproduz os temas de predileção, na cidade de predileção (Marselha, como sempre), em torno dos mesmos atores queridos: Ariane Ascaride, Anaïs Demoustier, Jean-Pierre Darroussin, Gérard Meylan. O conceito de família estendida, defendido pelas sucessivas histórias do francês, se sustenta atrás das câmeras, onde repete parcerias e desenvolve um cinema familiar nos diversos sentidos do termo. O cineasta dispensa a vaidade dos grandes movimentos de câmera e das atuações catárticas. Ele opera num realismo discreto, do tipo que acompanha os personagens com uma câmera atenta e simples: em caso de grandes movimentações, o enquadramento se torna fixo e aberto para abarcar as interações em cena. A economia narrativa – um pequeno grupo de personagens, em locações repetidas, vivendo conflitos do dia a dia – converte-se numa estética da cumplicidade. O diretor observa seus personagens de igual para igual, à altura dos olhos, elegendo a coletividade enquanto protagonista ao invés de defender um único ponto de vista contra os demais.
A abordagem singela jamais se confunde com desleixo ou desprezo pela linguagem. O que falta ao cineasta em pretensão estética, lhe sobra em ambições humanistas. O Mundo de Gloria dedica tempo considerável à solidão e à estafa de uma dezena de personagens. A montagem equilibra cenas unitárias de pai, mãe, avó, avô, outro avô, cunhado, cunhada etc., sem que nenhum deles se sobressaia aos demais. O cineasta aplica à mise en scène a noção de democracia e horizontalidade que prega na vida: os personagens possuem relevância equivalente, e as ações efetuadas por um deles impactam diretamente a rotina do outro. O conceito dos ciclos é muito bem explorado pela repetição progressiva, quase microscópica, dos problemas geracionais. Aos poucos, os três personagens idosos notam que seus filhos reproduzem os dilemas vividos por eles na juventude. Em outras palavras, o elevador social não está funcionando, e a “meritocracia” seria incapaz de justificar o problema: poucas figuras são mais esforçadas do que os membros desta família. O grupo de pequenos comerciantes, motoristas de aplicativo, funcionários de lojas, babás e prostitutas percebe, de maneira dura, que seus filhos serão tão pobres quanto eles sempre foram – o que inclui Gloria.
Resta uma produção repleta de carinho: os personagens de fato se amam, ainda que por caminhos tortos, excessivos ou violentos. Guédiguian constrói momentos comoventes de poesia minimalista, a exemplo dos haicais de Daniel, a dança sem música entre marido e esposa na loja e as inúmeras imagens das avenidas cheias e calçadas lotadas na arquitetura caótica de Marselha. O diretor demonstra prazer em apreender a construção urbana sem “limpá-la” para a filmagem: figurantes passam em frente da câmera por acaso, e a profundidade infinita faz questão de revelar toda a movimentação da cidade. O roteiro encontra no sexo um sinal do desgaste dos relacionamentos em decorrência da pobreza. A falta de dinheiro faz com que maridos e esposas briguem mais, e se afastem na ternura, buscando afetos paliativos em outras camas. A prostituição, as infidelidades e o sexo online são vistos com tanto respeito quanto melancolia. Neste contexto, o filme elege as associações e sindicatos como únicos símbolos possíveis para o fortalecimento das classes desfavorecidas – vide a cena final, que representa nada mais do que um grande pacto entre operários.
O Mundo de Gloria carrega um interessante aspecto de fábula. É sintomático que os personagens percam seus empregos simultaneamente, catalisando a busca por uma saída violenta. Em determinadas cenas, eles verbalizam o problema da hierarquia: quando um colega pede par Sylvie aceitar a greve e “observar as coisas com um pouco de recuo”, ela contesta que não precisa olhar para cima para limpar o chão. Algumas conveniências narrativas desembocam na romantização deste coletivo de marginais (vide a atitude de Daniel no desfecho) – a introdução do sacrifício dos mais velhos em nome da felicidade dos mais jovens permite a leitura utópica da comunidade. Para diversos cineastas, o realismo se converte em brutalidade. O francês, no entanto, jamais filma o sofrimento com qualquer senso de espetáculo: nota-se uma surpreendente doçura na cena da prostituição e na amizade entre dois homens apaixonados pela mesma mulher. Guédiguian foge à urgência e à denúncia, preferindo a ruminação introspectiva diante de problemas crônicos do capitalismo. Talvez ele pareça cada vez mais sonhador, otimista e generoso em suas produções recentes. Entretanto, é muito belo encontrar um cineasta que, após 40 anos de carreira e 25 filmes sobre a coletividade, nunca deixa de acreditar na transformação social pela política.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Bruno Carmelo | 8 |
Marcelo Müller | 8 |
MÉDIA | 8 |
Maravilhosa a sua crítica, parabéns!
Bom filme, bom comentário. Parabéns.