Crítica
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Crítica
O cinema é obcecado por apocalipses, pela especulação do que aconteceria em caso de algum cataclismo de extensão global. Já tivemos filmes em que a natureza se rebela e decide expulsar os seus agressores humanos; extermínios terrestres por alienígenas; guerras escalando até nos aproximar da extinção; máquinas decididas a tomar as rédeas do planeta; entre muitas outras possibilidades de fim. Nesse contexto, O Mundo Depois de Nós radiografa um tipo muito contemporâneo de medo, este componente utilizado historicamente por governos para enfiar goela abaixo dos eleitores propostas estapafúrdias – afinal de contas, a segurança deveria ser algo inalienável. O cineasta Sam Esmail captura com inteligência o clima de paranoia que resulta de uma realidade cada vez mais conectada, mas na qual o isolamento via telas ocasiona uma espécie de transe hipnótico. Amanda (Julia Roberts) e Clay (Ethan Hawke) estão à frente de uma típica família classe média norte-americana que resolve desestressar da rotina na metrópole e passar uns dias relaxando numa propriedade lindíssima que o seu dinheiro permite alugar. Piscina, vasta área verde, praia nas proximidades, enfim, promessa de dias idílicos para desintoxicar um pouco do dia a dia cosmopolita. No entanto, não há condições para uma desconexão real, pois uma simples queda de sinal de internet causa tensão palpável entre eles.
O Mundo Depois de Nós busca retratar uma realidade fragmentada em que somos reféns da desinformação e da falta de autonomia real. As coisas se complicam para essa família de folga quando G.H. Scott (Mahershala Ali) e sua filha, Ruth (Myha'la), chegam tarde da noite reivindicando o direito de entrar na casa (supostamente deles). Os dois anunciam um tumulto que impediu uma série de pequenas coisas fundamentais para que pudessem tomar o rumo da sua residência principal. Motor essencial de todo suspense, a dúvida é bem cozinhada na trama, trabalhada não apenas como um atributo do jogo de gato e rato com o espectador, mas também enquanto ignição para determinadas crises domésticas. Amanda fica inquieta com a presença dos visitantes inesperados, colocando em xeque as suas versões da situação calamitosa além dos limites daquela propriedade que começa a sofrer os efeitos da mudança. A publicitária branca de classe média desconfia dos pretensos proprietários da casa e chega a proferir motivos de cunho racista para sustentar a sua hesitação. Ela diz que pai e filha (negros) não têm “cara” de ricos e adiante faz um comentário revelador de um racismo estrutural sobre o cabelo da menina prestes a entrar na água. Porém, o diretor Sam Esmail não usa a segregação como tema principal, situando esse preconceito enraizado como outro sintoma da podridão humana que vem à tona.
Especialmente numa realidade como a nossa, em que filmes e séries estão ficando cada vez mais acelerados para, supostamente, atender às demandas de plateias ansiosas, é muito bem-vindo o ritmo lento e compassado de O Mundo Depois de Nós. No entanto, é sensível que sua narrativa poderia variar/oscilar de temperatura e pressão, manifestando por meio da forma a inquietude e a instabilidade que afeta os personagens. Às vezes a história, bem como as suas alusões, metáforas e seus comentários, perde um pouco de força por conta da repetição da dinâmica cuja formatação quase invariável é: esperas superficialmente calmas, passivo-agressividade e situações estranhas, como a queda de um avião, o encalhe de um petroleiro na praia ou mesmo a reunião bizarra de cervos ao redor da propriedade. Ainda bem que Sam Esmail tem à disposição um elenco talentoso que compensa essa espera morna com desempenhos impactantes. Vide a classe enigmática mantida por Mahershala Ali, o ponto de tensão representado pelo comportamento de Myha'la, a nulidade crescente do personagem de Ethan Hawke e a transparência indicativa da mulher controladora vivida por Julia Roberts. Os filhos do casal Amanda/Clay servem apenas para nutrir o discurso obsessivo dos pais sobre proteger seus descendentes, não muito mais do que isso. Mas, resultado da equação geralmente é instigante.
“Geralmente”, pois nem sempre O Mundo Depois de Nós é certeiro. Há momentos que apenas dão volume à trama. As tensões sexuais são exemplos disso. Elas poderiam instigar os curtos-circuitos entre os personagens em busca de alguma informação durante o caos com ares de apocalipse. O desejo do garoto por Ruth funciona somente quando relacionado ao breve flerte dela com Clay, ou seja, pai e filho desejando a mesma mulher – mesmo assim, nada que faça diferença, assim como a paquera de Amanda e G.H. no cômodo dos discos. Sam enche o enredo com situações disfuncionais, estimula as nossas expectativas, mas não consegue coordenar com excelência as perguntas, as especulações e as respostas. E isso está posto no modo como as elucidações sobre o cataclismo são essenciais para um resultado mais satisfatório. Oras, se o filme passa o tempo todo levantando perguntas sem explicações imediatas, fazendo da dúvida a principal agente motivador das perturbações de outras naturezas, será que oferecer de bandeja uma resolução não acaba empobrecendo o percurso anterior? De toda forma, mesmo com senões, e que de vez em quando também mostre um deslumbre quase puramente fetichista com a movimentação da câmera, o filme ainda consegue ser eficiente na captura desse mal-estar e ter lampejos de grandiosidade, como a piada irônica (e genial) sobre streamings e mídias físicas.
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