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Sinopse

Uma ópera animada em que acompanhamos o reinado de horror de Josef Stalin na Rússia. São fragmentos inspirados pelo clássico O Nariz, livro escrito por Nikolai Gógol, publicado em 1836.  

Crítica

O Nariz ou a Conspiração dos Dissidentes é uma ora intrigante, ora contundente, mas continuamente lisérgica, viagem que visa, no frigir dos ovos, criticar o regime de Josef Stalin (1878-1953), especialmente no que diz respeito ao trato desumano e arbitrário com os artistas dissidentes. O filme é dividido em dois atos bem distintos. No primeiro deles, sobressai a aparentemente infindável liberdade com a qual o diretor Andrey Khrzhanovskiy lança mão de um trânsito por camadas intercaladas. Com atores de carne de osso, apresenta passageiros de um avião consumindo o conteúdo disponibilizado pela companhia aérea nas televisões das poltronas à frente. Logo, somos arremessados abruptamente numa releitura animada de O Nariz, conto satírico de Nicolau Gogol que começa com o horror tomando conta do barbeiro após ele encontrar um nariz dentro de seu pão. O que se vê a partir daí é a reconstituição (igualmente repleta de autonomias criativas, inclusive algumas que apenas a animação concretiza com tamanho louvor) da montagem da ópera baseada na história, esta composta por Dmitri Shostakovich, autor popular duramente perseguido pelo período stalinista.

O que depõe contra o longa, apesar da capacidade de abismar com tamanho movimento e criatividade, é pressupor que há conhecimento acerca das figuras dispostas na tela. Por exemplo, descobrir a história de Dmitri Shostakovich ajuda bastante à compreensão das principais intencionalidades de O Nariz ou a Conspiração dos Dissidentes. Sem o contexto, corre-se o risco de ficar restrito à experiência como deleite puramente estético, porque seu tônus narrativo acaba sendo desprestigiado. Em dado momento dessa mistura de níveis, com a justaposição de várias técnicas de animação, além de passagens de obras paradigmáticas do cinema soviético, há a representação do cineasta Sergei Eisenstein supostamente tendo a ideia da famosa cena da escadaria de Odessa de Encouraçado Potemkin (1922). Igualmente, quem reconhecer a figura poderá se apropriar da mensagem oferecida, mas alguém sem qualquer antecedente com esse emérito russo, um dos maiores criadores/teóricos da história da Sétima Arte, tenderá a ficará à deriva. Essa é a tônica do filme até ali.

Na segunda metade de O Nariz ou a Conspiração dos Dissidentes há uma mudança de tom. Ao deixar um pouco de lado a trama de Gogol, a produção transforma abertamente Stalin em alvo, desenhando-o como líder frívolo e inclinado a posições totalitárias. Entediado, esse mandatário convoca uma comitiva para ir ao teatro assistir à ópera de Dmitri Shostakovich. Contradizendo a pegada essencialmente cifrada predominante até então, Andrey Khrzhanovskiy escancara a reprimenda ao mostrar Stalin sendo desbragadamente passivo-agressivo com seus consultores. Claramente induzindo-os por meio de ameaças contidas nas entrelinhas de sua suposta generosidade, ele faz com que todos considerem a adaptação de O Nariz cacofônica e contrária aos ditames estéticos do stalinismo vigente. Desse ponto em diante, os objetivos principais do filme são melhor esclarecidos. Há uma sucessão de vislumbres desalentados quanto à repressão dos não condicionados pela cartilha do regime que governava a União Soviética recorrendo a brutalidades em nome de uma causa "maior".

Essa operação oferece subsídios, inclusive, para identificarmos um franco elogio à insubordinação, algo fortemente contido nos contornos estéticos de O Nariz ou a Conspiração dos Dissidentes. Independentemente da técnica, há uma prevalência do expressionismo, vanguarda que buscava valorizar aspectos subjetivos, para isso incorrendo em sucessivas deformações da realidade. Ora, se trata de um evidente contraponto ao realismo socialista, justamente o estilo oficial da União Soviética aprovado em 1934, que vigorou até os anos 1960, mas que já se insinuava antes como uma política de Estado. Andrey Khrzhanovskiy faz do tracejado exagerado, das linhas enviesadas e das passagens retorcidas, tais como a fragmentação da mulher durante o surto de cólera, uma ode à resistência daqueles que acabaram sendo penalizados por almejar uma liberdade artística então considerada inimiga. É uma postura ácida que culmina com um painel de homens e mulheres perseguidos, de tão numeroso, redundante numa indefinição. Pena que situar o espectador não ganhou semelhante atenção.

Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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