Sinopse
Cinco irmãos carregam o trauma de terem sido abandonados pelo pai durante a infância. Quando a mãe morreu, pouco depois, o menino mais velho precisou cuidar de todos. Trinta anos depois, cada um seguiu um caminho diferente, mas a notícia de que um homem idoso na UTI pode ser o pai deles reaproxima os cinco novamente.
Crítica
O Novelo (2021) pode ser compreendido na perspectiva de um cinema de reconforto. Trata-se de uma obra movida por sentimentos e virtudes: através da ciranda de cinco irmãos adultos, reforça-se a importância da união familiar, da superação de desavenças, do respeito à diferença. A história se desenvolve através de choros e abraços, brigas e pedidos de desculpa, bolos de chocolate para comemorar a sobriedade do rapaz alcoólatra e olhares solidários diante da confissão da homossexualidade. O drama oferece uma equivalência, dentro da produção brasileira, àquilo que os norte-americanos chamam de cinema indie: projetos simples focados nos personagens e nos diálogos, onde um grupo de pessoas desajustadas enxerga a humanidade nos demais e descobre que são mais fortes juntos. Assim, os percalços do caminho se mostram temporários, passíveis de superação na cena seguinte, e o registro privilegia a moderação: os risos se convertem em meios sorrisos, já os choros se tornam lágrimas discretas, atenuadas por alguma piada em seguida. A bebedeira do sujeito em fase de recuperação é esquecida com rapidez; um caso de traição (o rapaz que dormiu com a esposa do outro) se resolve com uma proposta cômica; os anos de exclusão pelo intelectual esnobe são ignorados em nome da promessa de um jantar em família. O indie evita resolver os problemas magicamente, mas acena à possibilidade de resolução a curto prazo – o otimismo se encontra na perspectiva de novos rumos.
O preceito se estende à construção estética e narrativa. Partindo do roteiro de Nanna de Castro, a diretora Cláudia Pinheiro investe nos caminhos mais convencionais do melodrama familiar: a trajetória alternada entre dilemas contemporâneos e flashbacks da infância; a apresentação de cada irmão em cenas distintas, antes de uni-los; o uso de símbolos evidentes de liberdade e restrição, caso da pipa voando no céu e do pássaro preso na gaiola. A montagem paralela reforça relações de causa e consequência: como se maquiavam na infância, revelam-se tolerantes à desconstrução da virilidade no presente; visto que aprenderam a tricotar quando pequenos, resgatam esta prática quando precisam se reunir. A cineasta dedica tamanha atenção ao quinteto que se aproxima de um dispositivo teatral, onde os homens conversam dentro de um hospital estranhamente vazio, silencioso, com pouquíssimos pacientes e médicos. O corredor existe apenas para eles, na função de pano de fundo. A gentileza se estende ao espectador, a quem se mastigam as descrições para que nada passe incompreendido: o psicanalista gay (Rogério Brito) usa óculos de aro grosso, vive num grande apartamento claro com decoração em cores pastéis e escuta ópera o tempo inteiro. Já o advogado, truculento e malandro (Sérgio Menezes) esbanja dinheiro enquanto defende uma cliente grosseira, chamando outra mulher de “puta” aos gritos. Os universos são claramente delimitados.
Um mérito considerável em O Novelo decorre da história liderada por atores negros em situações dissociadas do racismo, da marginalidade e do preconceito. Os irmãos desempenham o papel de escritores, atores, empresários. Uma das primeiras cenas apresenta Mauro (Nando Cunha), patrão negro, sendo assistido pela secretária branca. A sequência possui implicações ínfimas em termos de conflito, porém carrega inegável valor simbólico. O discurso se mostra benevolente com as experiências de sexualidade (“Eu até tentei ser gay”, explica Cacau, interpretado por Sidney Santiago Kuanza), desconstruindo o ideal do macho predador, o preconceito acerca do negro ultrassexualizado e da mulher doméstica e passiva. Há espaço para afeto genuíno entre homens que se abraçam e cuidam uns dos outros. Longe de defender bandeiras explícitas (os temas são introduzidos em tom menor), o projeto sustenta um olhar progressista calcado no sentimento. Por isso, evita filiar os protagonistas a campos político-ideológicos precisos, às crenças religiosas e a quaisquer formas de instituições. Ao situar a quase integralidade da subtrama atual ao longo de um único dia, a narrativa se permite diminuir o peso dos dilemas lá fora: conhecemos em detalhes apenas aquilo que os personagens decidem revelar por conta própria. Existe um aspecto terapêutico no dispositivo, acreditando na cura através da fala e do expurgo ocorrido no interior de um espaço seguro (o hospital-cenário).
Tamanha generosidade não impede alguns tropeços. Primeiro, na coesão entre os heróis: supondo que nasceram e foram criados juntos, sem terem se mudado para outros Estados – nenhum aspecto do filme leva a crer nesta hipótese -, como justificar o sotaque carioca de Rocco Pitanga e Sérgio Menezes face ao palavreado tipicamente paulistano de Sidney Santiago Kuanza e Rogério Brito? Segundo, a busca por uma construção leve, próxima do humor, provoca sequências desajustadas, caso do oferecimento da namorada para fazer sexo com o irmão, e dos diálogos polidos demais entre os namorados: “É como a esfinge: decifra-me ou devoro-te”, responde o sujeito estrangeiro, reforçando a interpretação estereotipada da burguesia intelectual. A confissão do escritor psicorrígido ao pai em coma, num plano aberto, também se mostra excessivamente didática. Esta abordagem revela profunda empatia e carinho por suas figuras falhas (sendo a condescendência, ou o paternalismo, outro traço indispensável ao indie), o que não necessariamente se traduz em sutileza de mise en scène. A direção de fotografia privilegia os close-ups e os planos de conjunto nas conversas, enquanto os enquadramentos levemente móveis revelam algumas composições muito belas – vide a interação de Mauro e Cicinho, focados ao fundo do plano, em contraste com Zeca desfocado em primeiro plano. De resto, a direção se coloca na posição humilde de oferecer o palco para os atores brilharem, sem chamar atenção a si própria.
Em consequência, a obra busca o valor do humanismo, da inclusão social e da convivência entre diferenças. O símbolo do tricô, que alude ao título e retorna num instante-chave, representa bem a desconstrução do machismo – embora tivesse sido importante presenciar alguma peça finalizada pelos irmãos, ou a importância do tricô em suas vidas ao longo do crescimento. Pinheiro acredita num cinema delicado, calcado no minimalismo e na modéstia. Seria fácil apontar a ausência de vigor na luz e na arte, além da falta de contrastes através da montagem, porém estas representam escolhas deliberadas de um filme que privilegia a fluidez e o bem-estar. A diretora evita provocar os personagens e os espectadores ao limite da catarse, concluindo a obra em tom solar, beirando o cômico (a confissão de Cicinho a Mauro). Na verdade, a premissa de afagos e reencontros concebe desavenças apenas pelo prazer de eliminá-las rumo à conclusão. A dor no estômago é esquecida, o rancor com o pai é exteriorizado, o dilema com as filhas pequenas permanece em segundo plano. O Novelo se transforma numa singela terapia de grupo, embutida numa obra adulta que evita tanto as facilidades das produções populares quanto o hermetismo das propostas de autor. Neste sentido, ocupa um espaço precioso na cinematografia brasileira, carente de pontes entre os extremos. Até neste sentido, o drama constitui uma proposta de conciliação.
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