O Orfanato
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Shahrbanoo Sadat
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Parwareshghah
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2019
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Dinamarca / Luxemburgo / França / Alemanha / Afeganistão
Crítica
Leitores
Sinopse
Órfão de pai e abandonado pela mãe, Qodrat é um garoto de quinze anos de idade que vive como cambista na porta do cinema, além de vendedor de pequenos objetos. Por conta das atividades ilegais, é levado pelas autoridades a um internato soviético, onde descobrirá a ideologia comunista. Fora dos muros do local, no entanto, o Afeganistão está em conflito intenso, às vésperas de uma violenta Revolução Islâmica.
Crítica
A sequência inicial confronta a realidade ao sonho escapista: o adolescente Qodrat (Quodratollah Qadiri) acorda dentro de um carro abandonado no ferro-velho. Trata-se do abrigo do garoto órfão, desprovido de amigos ou pessoas próximas. Em seguida, ele se dirige ao cinema local para vender ingressos como cambista. Dentro da sala escura, assiste às produções de Bollywood onde o mocinho supera todos os vilões, conquista a garota mais bela e salva o dia. A vida do protagonista não é apresentada enquanto miserável ou sofrida – ele parece conformado com esta rotina –, mas contrasta com o ideal de força, virilidade, romantismo e espetáculo provenientes das telas do cinema. O jogo entre aparência e essência acompanha toda a narrativa de O Orfanato (2019), drama sobre uma instituição soviética para menores de idade tentando manter a aparência de tranquilidade enquanto o regime agoniza lá fora, e as pressões islâmicas apontam para uma revolução armada a qualquer momento. Um tanque de guerra encontrado nas redondezas sugere a violência iminente, mas dentro dos dormitórios, os garotos brincam de luta sem distinguir a violência real da imaginária.
Curiosamente, a diretora Shahrbanoo Sadat elege como protagonista um garoto que não faz mover a narrativa. Nenhuma ação de Qodrat provoca reviravoltas ou conflitos, e ele tampouco sofre com os acontecimentos de maneira diferente dos demais. Neste filme, ele se torna um observador exemplar, de pouquíssimas palavras, assimilando as regras rígidas do orfanato e criando amizades naturalmente. O roteiro inclusive se esquece dele durante algumas sequências para retratar o colega que sofre bullying, o fortão da escola, aquele que faz de tudo para ser aceito socialmente etc. A estrutura não investe no filme coral propriamente dito, deixando claro que Qodrat ainda representa o ponto de vista central. No entanto, o menino se confunde com o olhar do público, convidado a descobrir um contexto cujas implicações políticas não conheça muito bem. Para o garoto, é muito mais importante conquistar a menina mais bonita da escola e jogar futebol com os colegas do que brigar por um ideal qualquer de coletividade. O universo infantil permite ao filme casar o particular e o nacional, o privado e o público. A cineasta extrai algumas de suas melhores cenas da conjunção improvável da guerra efetiva com a fictícia, quando os meninos colecionam projéteis encontrados nas redondezas ou substituem a luta lá fora por uma intensa batalha de xadrez na qual a virilidade do rapaz mais forte é testada perante os demais.
A inocência de Qodrat atinge seu ápice nas inesperadas cenas musicais. Quando algum conflito pulsional mexe com o menino (seja pelo estímulo do sexo ou da morte), ele sonha com números musicais onde assume o papel de protagonista forte e irresistível às meninas. A diretora possui ótimo senso de humor para estas sequências exageradas, ainda que mal distribuídas ao longo da trama: após demonstrarem potencial no início, elas são esquecidas durante quase todo o filme, para retornarem rumo ao final. De qualquer modo, existe um afeto evidente em relação à subjetividade do protagonista, retratada por um humor respeitoso. Nos intervalos musicais, as cores se tornam mais fortes enquanto os figurinos e a maquiagem simulam uma vida adulta caricatural, correspondendo ao simulacro da maturidade. Os aspectos mais brutais do realismo poético, incluindo duas violentas mortes, são suavizadas pelo contraste imediato com os números escapistas, de concepção lúdica: em seu mundo, o jovem órfão contorna todos os problemas sem o mínimo esforço.
O projeto não apela à virtude da ignorância (este não é A Vida É Bela, 1997), e sim ao poder da arte enquanto ferramenta de ressignificação do real. Embora haja uma única cena situada na sala de cinema, o símbolo da projeção se propaga em outros instantes, ao sugerir que Qodrat se protege do horror dentro dos sonhos inspirados em ficções indianas. Para um garoto desprovido de conforto e ajuda, não seria absurdo sugerir que o cinema constitua um referencial paterno de controle (de si e dos outros) e de afeto (nas cenas sonhadas, ele recebe o carinho de amigos e das meninas). O jovem ator inexperiente possui uma construção crua, muito benéfica ao filme: seria fácil apostar em lágrimas de desespero e saudade, ou ainda em olhares sonhadores. Ora, Quodratollah Qadiri ostenta uma expressão simples, ao limite da indiferença, sobre a qual se projeta os sonhos sugeridos pela edição como num efeito Kuleshov. O aspecto de naturalidade de todos os meninos, ostentando dentro da narrativa seus nomes reais, efetua um belo contraste entre a ficção e a aparência de documentário, ou ainda entre a imagem real e a imagem sonhada. Algumas cenas navegam de propósito entre a realidade e a ilusão (o colega teria mesmo vencido o computador da URSS num jogo de xadrez?), como se a verdade não importasse pelo ponto de vista dos jovens.
Ao mesmo tempo, O Orfanato apresenta notável trabalho de fotografia, direção de arte e montagem, apostando na simplicidade e na discrição, porém com visível atenção aos detalhes. A cineasta trabalha com enquadramentos distantes e fixos, como se acompanhasse seus personagens à distância, na pele de um observador silencioso. Ela evita o dinamismo das brincadeiras e o vigor da infância, preferindo manter um aspecto melancólico de quem nunca pertence àquele cenário de fato. Assim, Qodrat se torna ainda mais misterioso, mais rico em implicações e leituras. As pequenas vontades do garoto são inconsequentes, para ele e para a narrativa: a paixão pela menina da turma não traz resultado, a vontade de se vingar do regime tampouco exerce qualquer mudança ao redor. A conclusão agridoce aposta simultaneamente no desejo de ação e na impotência efetiva dos garotos contra a Revolução Islâmica de 1973. Baseado num diário não publicado, o filme transparece o aspecto da intimidade e a magia do cotidiano, fornecendo uma representação tão cruel quanto doce dos golpes políticos que massacram indivíduos em nome de um ideal de coletividade. Cerca de cinquenta anos mais tarde, torna-se inevitável assistir ao projeto enquanto fábula de origem sobre a ascensão de um regime totalitário dizimando os sonhos de uma nova geração.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Bruno Carmelo | 7 |
Cecilia Barroso | 5 |
MÉDIA | 6 |
Gostei muito deste filme, por conhecer um pouco do Afeganistão, por ser um momento da presença russa no país e pela forma de contar a história narrada. O que aconteceu às crianças do orfanato? Se o contador da história a escreveu é porque ele sobreviveu ao final e, claro, não foi como ele imaginou, como viu no cinema. Fica um gosto de quero mais, de uma realidade inacabada, muito forte e melancólica. A proposta do filme foge aos padrões hollywoodianos e isto é o que vale e o que o torna um belo pedaço de cinema.