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Sinopse

A representação de personagens homossexuais em Hollywood teve várias fases. Neste documentário, as histórias de gays e lésbicas no seio da indústria norte-americana do cinema, bem como os reflexos positivos e negativos de protagonistas e coadjuvantes, ganham os holofotes.

Crítica

É curioso que um documentário de amplitude popular nasça de uma pesquisa acadêmica. Vito Russo, ativista e historiador do cinema, propunha no livro The Celluloid Closet (1981) analisar a representação de homens e mulheres homossexuais dentro da indústria norte-americana. Muitos estudos de gênero e sexualidade privilegiam cinematografias onde representações marcantes surgiram desde o início do século XX (caso da Alemanha e da França), porém o pesquisador buscava compreender porque se falava – ou não se falava – de sujeitos atraídos por pessoas do mesmo sexo dentro das obras mais vistas do mundo, aquelas com maior poder de influência e persuasão. Em se tratando de uma obra sobre imagens, os cineastas Rob Epstein e Jeffrey Friedman resgatam as imagens de que Russo falava, fornecendo um complemento à argumentação textual. Não há muita liberdade de raciocínio do documentário em relação ao livro: ele se contenta em elaborar uma farta ilustração de casos. Existe um componente de curiosidade em torno do filme de 1995: de que imagens Russo estava falando? Não seria ótimo poder ver os personagens gays e lésbicas descritos pelo autor?

De fato, o melhor aspecto deste projeto cinéfilo e militante se encontra no material de arquivo a que os cineastas têm acesso. Nota-se o paciente trabalho de pesquisa para encontrar as muitas dezenas de obras citadas e selecionar os vinte ou trinta segundos mais representativos da homossexualidade. Os diretores evidenciam cenas e subtextos que poderiam passar despercebidos dentro da obra completa. Em se tratando de um filme cujo tema é anunciado desde os primeiros segundos e reverberado pela narração constante (na voz de Lily Tomlin), somos condicionados a traduzir um olhar ambíguo ou uma alguma frase de duplo sentido enquanto representações certeiras da homossexualidade não percebida ou não admitida em sua época. Assim, o cinema busca reparar parte da invisibilidade a quem foram submetidos as pessoas e os personagens gays e lésbicas, transformando-os em protagonistas dos filmes onde desempenhavam um papel secundário. Os diretores não estão preocupados com a qualidade destes filmes em geral, com seus recursos estéticos nem os prêmios que ganharam, e sim com o retrato da orientação sexual de seus personagens. Nem mesmo a sexualidade dos artistas de Hollywood, aqueles que faziam os filmes, é avaliada: o foco se encontra exclusivamente nas obras produzidas.

Este filtro permite reler filmes consagrados (Filadélfia, 1993, Infâmia, 1961, e Ben-Hur, 1959) por olhares totalmente novos, o que sempre constitui um exercício interessante às novas gerações – nada é pior do que reproduzir a adoração irrefletida de outros tempos em relação aos cânones do passado. A proposta de close reading retira o cinema de sua esfera reverencial, ou meramente autoral, para reavaliá-lo enquanto sintoma de seu tempo. Quando se apresenta dezenas de personagens gays efeminados, servindo apenas para alívio cômico, ou então perversos e suicidas, estuda-se também a maneira como a sociedade da época aceitava a sua própria imagem no espelho. Embora não se aprofunde no aspecto psicológico da projeção, o documentário demonstra consciência de que a vontade de se ver em tela não corresponde a mero narcisismo, e sim um processo de validação e pertencimento social. O Outro Lado de Hollywood poderia ir muito mais longe em sua análise social, compreendendo como a mudança de governos, a participação na Primeira e na Segunda Guerra mundiais, sem falar na Guerra do Vietnã, exerceu um impacto na percepção da sociedade sobre a masculinidade – e, por extensão, na imagem de homens no cinema. Ele poderia discorrer sobre religiosidade, a caça aos comunistas, o papel da mídia etc., porém prefere se ater ao diálogo dos filmes uns com os outros.

Outros elementos estão estranhamente ausentes no projeto. O primeiro dele seria a associação entre a luta gay e lésbica com as lutas de transexuais e travestis, praticamente ocultados do discurso, e também com outras reivindicações de movimentos civis, sobretudo aqueles em defesa dos negros. Não se discute bissexualidade, assexualidade, nem fluidez, embora os anos 1990 já trouxessem ideias interessantes a respeito. Ironicamente, a estrutura ainda reproduz uma demarcação polarizada entre “personagem gay” e “personagem lésbica”, sem a possibilidade de navegar entre ambos. Em paralelo, a História recebe um tratamento de “melhores momentos”: “Entram em cena os efeminados”, avisa a narradora, para vermos sequências de personagens efeminados em comédias dos anos 1940. “O Código Hayes [que praticava a censura no cinema] foi gradualmente abolido”, decreta em outro momento. A evolução das imagens é compreendida em blocos, cada um movido por seu conflito central. No entanto, o roteiro não questiona o que teria permitido levar de um ao outro. Que condições foram necessárias para o surgimento dos sissies? O que levou o rígido Código Hayes a ser abolido? O caráter didático faz com que o resultado se concentre nos aspectos mais evidentes, porém as transições entre blocos seriam ainda mais importantes do que o tema central de cada um deles.

Assim, o documentário está menos interessado em fornecer elementos de reflexão do que entregar uma reflexão pronta. A montagem, bastante ágil na articulação de fragmentos e filmes, adota o caráter show and tell, ou seja, “mostre e conte”: primeiro ela explica a hipótese que pretende provar (“o único final permitido aos personagens gays e lésbicas dos aos 1960 era a morte”, por exemplo), para em seguida comprovar a sua ideia. Cada hipótese se justifica pelo farto material, porém teria sido mais interessante apresentar as imagens, deixando-nos tirar nossas próprias conclusões, para só então fornecer uma possibilidade de leitura. Ora, os cineastas não pretendem deixar as interpretações abertas: nota-se o desejo de controle na narrativa, como se os personagens gays e lésbicas tivessem sido mal interpretados (ou censurados) durante tanto tempo que precisassem agora ser apresentados sob um ângulo claro e inequívoco. Epstein e Friedman reivindicam o protagonismo de sua versão da História, sem acreditar que precisam ouvir outros lados ou reabrir a discussão. O filme parece dizer: “Nunca fomos ouvidos até agora. Então parem e escutem o que temos a dizer”. Tamanha clareza conduz a um resultado assertivo e rico, muito bem argumentado. Em 2020, o documentário Revelação efetuou um processo semelhante, dando voz a diretores, atores e atrizes transexuais. O novo documentário vai mais longe ao questionar o lugar de fala, a fetichização do corpo, a ligação entre gênero e raça, o componente misógino dentro da LGBTfobia etc. No entanto, para o cinema dos anos 1990, ainda carente de uma pesquisa ao mesmo tempo acessível e aprofundada sobre a imagem da homossexualidade, O Outro Lado de Hollywood desempenhou um papel fundamental.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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