Crítica
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Sinopse
Crítica
O nome do diretor britânico Guy Ritchie esteve durante muito tempo associado a um cinema de ação estilizada com ritmo e características peculiares, adequado a personagens excêntricos. Mas, de uns anos para cá, ele tem diversificado a sua atuação, ao ponto de comandar Aladdin (2019), versão live-action de uma das animações Disney de maior sucesso das últimas décadas – a bem da verdade, megaprodução certamente vigiada por uma horda de produtores, por isso sem as assinaturas habituais do realizador, ainda que competentemente conduzida. O Pacto é outra demonstração dessa variação estilística por parte de Ritchie, também distante do irônico (e ótimo) Esquema de Risco: Operação Fortune (2022), o seu trabalho anterior. Dessa vez a pegada é mais realista. O tom serve a uma trama eletrizante em certos momentos, ambientada no Afeganistão ocupado durante duas longas décadas pelos Estados Unidos. O protagonista é John Kinley (Jake Gyllenhaal), sargento do exército norte-americano alocado no país do Oriente Médio como líder do esquadrão responsável por procurar operações, armas e explosivos do Talibã. Depois da emboscada na qual perde dois companheiros, ele recebe Ahmed (Dar Salim) como novo intérprete da unidade e identifica logo sua proatividade atrelada à insubordinação quando necessário. O filme tem três etapas demarcadas: introdução, sobrevivência e extração.
Na primeira delas, a introdução, é construído esse panorama. John é desafiado pela astúcia do novo intérprete, do que decorre uma tensão hierárquica com notas de admiração – méritos da forma como o sempre competente Jake Gyllenhaal expressa sutilmente a ambivalência. Do ponto de vista de Ahmed, o mais interessante é a diferença sutil que ele mesmo anuncia ao dizer “não sou tradutor, sou intérprete”. Portanto, o afegão a serviço dos estadunidenses assume uma postura ativa nas negociações e missões, não se contentando em simplesmente transformar palavras árabes em equivalentes do inglês para os soldados estrangeiros. Guy Ritchie enfatiza muito bem isso na cena em que Ahmed omite algumas coisas ao intermediar o contato entre os militares e um rapaz que pode fornecer pistas valiosas sobre o Talibã. Por exemplo, Ahmed subtrai da tradução as ameaças de morte que o conterrâneo faz a ele, com isso priorizando a objetividade das informações a serem utilizadas pelo exército dos Estados Unidos. Vivido com altivez por Dar Salim, o homem que serve ao “inimigo” em troca de dinheiro e da promessa de vistos para ele, a esposa e o filho é o personagem trágico. Ahmed personifica o comentário dos letreiros sobre a perversidade do governo norte-americano que prometeu tudo aos locais colaboracionistas, mas que deixou diversos deles para morrer à própria sorte no território hostil.
Na segunda etapa, a sobrevivência, a missão perigosa de reconhecimento de uma provável instalação talibã rende pilhas de cadáveres, além da sobrevivência de Ahmed e John gravemente ferido, fora de combate. Aliás, essa sequência demonstra toda a qualidade de Guy Ritchie como encenador de instantes tensos, vide a construção da expectativa crescente que culmina com o enfrentamento carregado de fúria e intensidade dramática. Fato é que Ahmed precisa assumir o protagonismo de O Pacto ao carregar o superior imediato por montanhas íngremes e escarpas igualmente desafiadoras enquanto é perseguido pelo Talibã. A exaustiva jornada intermediária serve para o realizador ampliar um pouco a visão do entorno, sobretudo para separar o joio do trigo e impedir a visão totalizadora dos afegãos como inimigos do mundo ocidental. O roteiro assinado por Guy Ritchie, Ivan Atkinson e Marn Davies nos apresenta a cidadãos comuns também ameaçados pela sanha do Talibã. Por fim, a terceira etapa, a da extração, volta a entregar o protagonismo a John, o militar disposto a fazer de tudo para retribuir um favor definidor. Ao longo da conexão entre essas três partes bem delimitadas, há assuntos e vieses pouco desenvolvidos, sobretudo os que poderiam servir para criticar os Estados Unidos. Nesse sentido, o item mais dramático é a recusa dos EUA de permitir logo a entrada de Ahmed no país.
O Pacto é um filme bastante envolvente, com personagens interessantes e alguns momentos que chegam perto do excepcional. No entanto, numa história que denuncia o abandono de intérpretes afegãos pelo contratante (o governo dos Estados Unidos) é questionável a opção de manter como protagonista o militar estadunidense disposto a dar uma de John Rambo para aplacar as pressões da consciência pesada. Também é preciso analisar os aspectos ideológicos contidos nessa extração, em meio à qual Ahmed é subordinado a uma posição passiva de espera pelo estrangeiro devedor que ficará com todas as honras do heroísmo. Uma vez que o governo não é suficiente, John faz contato com a empresa paramilitar operante no Afeganistão. Guy Ritchie perde oportunidades valiosas de expandir o seu exame da situação ao não afrontar a postura perversa dos Estados Unidos. Tampouco ele lê o cenário como poderia a fim de observar criticamente a existência de um mercado paralelo lucrando com o desinteresse dos EUA (sim, pois em nenhum momento a iniciativa privada compensa qualquer falta de expertise). Então, é justamente ao desenvolver esse último terço do filme, o da extração, que Ritchie escorrega ao reforçar os elogios à iniciativa militar no Oriente Médio. No fim das contas, o estadunidense salvando afegãos simboliza uma perspectiva positiva da campanha norte-americana no país. Mesmo com esse claro comprometimento ideológico, o filme funciona muito bem como thriller.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Marcelo Müller | 7 |
Leonardo Ribeiro | 6 |
Francisco Carbone | 5 |
MÉDIA | 6 |
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