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Sinopse

Lucía vive isolada com seu filho Diego na Espanha do século XIX. Mas, tudo muda quando um ser maligno se instaura nas redondezas, uma monstruosidade que se alimenta do medo humano.

Crítica

A verdade está lá fora, diz a cultura pop, mas a experiência ensina que os demônios moram, mesmo, é dentro do homem. Em O Páramo, longa ficcional de estreia do diretor e roteirista espanhol David Casademunt, pouco é dito e menos ainda é mostrado – e, acredite, esse é um ponto positivo da produção. Afinal, não está naquilo exposto e escancarado, divulgado com antecedência, o perigo pelo qual se deve temer. Está, sim, no imprevisto, na surpresa, no que chega sem aviso ou alerta. Sabe-se, desde o começo, que há tensão no ar. Um temor que está distante, quase inalcançável. Mas, e se esse cenário mudar? Afinal, algo irá acontecer, pois de caso contrário nada haveria a ser dito. E quando, enfim, o esperado se manifesta, a resolução que se apresenta há muito foi revelada, porém somente aos mais perceptivos – os desatentos, esses, permanecerão no escuro. É esta aparente simplicidade que faz desse um conto merecedor de uma atenção especial.

O letreiro inicial, em poucas frases, oferece a explicação necessária: em meados do século XIX, a Espanha encontrava-se imersa em guerras internas. Para fugir desses atritos, um casal toma uma decisão radical: afastar-se de tudo e todos. Em uma cabana no meio de um campo, pai e mãe se mudam com o filho único. Os três se mantém isolados de qualquer ameaça, e a possibilidade de um vizinho se aproximar será registrada com bastante antecedência. Uma vez instalados, está ao alcance deles qualquer coisa que possam necessitar: animais para cuidar e servir de alimento, um pedaço de terra que possa lhes oferecer mantimentos, um riacho com água em abundância. A casa é forte, feita de pedra, com um telhado resistente. Mas o detalhe está mais adiante: o homem posicionou, em lugares estratégicos, cobrindo o entorno, totens que para afugentar o indesejado. Sejam eles físicos, servindo como espantalhos, mas, principalmente, sobrenaturais, agindo como um catalisador.

Algumas situações se repetem. Diego (o jovem e talentoso Asier Flores, que estreou na tela grande tendo como padrinho ninguém menos do que Pedro Almodóvar, ao aparecer como o protagonista Salvador, quando criança, de Dor e Glória, 2019) acorda no meio da noite com vontade de urinar. O medo nele é tão grande que mal o impede de alcançar o penico abaixo da cama, e quando o faz, o menor imprevisto é suficiente para que largue o vasilhame no chão, quebrando-o em pedaços. Por isso, a única solução, a partir de agora, será a “casinha” no outro lado do terreno. Mas como sair no meio da noite? A mãe é acordada, o pai precisa levantar e se dispor a acompanhá-lo – não sem antes levar consigo uma espingarda. Esse mesmo processo voltará a acontecer, com algumas variantes: ou será a mulher que irá com a criança, ou ambos poderão optar por realizar suas necessidades em casa mesmo, sem se aventurar pelo escuro. A mais surpreendente, porém, será quando aquele quartinho abandonado se revelará o único abrigo restante ao menino. Nada, como se percebe, tem um único significado.

Essa dupla interpretação irá permear a narrativa. Com a saída de cena do pai e marido (Roberto Álamo, de A Pele que Habito, 2011) – que após muito se esforçar, sem sucesso, para adentrar no forte elo formado por mãe e filho, termina por aproveitar a primeira oportunidade para deixá-los, e mesmo com a promessa de retorno sendo alegada, é sabido que não mais será visto – caberá aos remanescentes atravessar por um pesadelo no qual pouco se conseguirá identificar entre o que é real ou imaginado, o que habita o campo da ilusão ou o que está, de fato, se passando diante deles. Ambos estão enclausurados, o ambiente que os circunda parece se fechar de modo asfixiante, e o que tanto receiam que venha de longe passa a se manifestar a partir deles mesmos. Nessa construção, o trabalho de Inma Cuesta (A Desordem que Ficou, 2020), que vai da mãe amorosa e protetora a uma figura instável e com potencial para piorar ainda mais a situação, é exemplar, pois trilha pelos detalhes, de olhares enviesados aos pequenos gestos, deixando discursos explicativos e ações grandiosas como excessos a serem evitados.

Assim, Casademunt consegue imprimir em O Páramo a angústia e o terror necessário para que o pesadelo almejado se confirme mais através da sugestão do que pela inserção de alegorias que, quando, enfim, adentram a cena, acabam por soar mais como uma concessão do que uma necessidade demandada pelo enredo. Em um contexto no qual o mundo há muito se afastou e o que resta aos olhos e demais sentidos parece não mais fazer sentido, o último refúgio vem da certeza do próprio potencial e da confirmação do que se é possível alcançar por si só e não do auxílio externo, pois esse debandou e é melhor dele não mais gerar expectativas. Mais rica é a imaginação do que aquilo ao alcance de um estender das mãos, seja no meio da noite, como também em plena luz do dia. Em tempos de guerra ou em momentos de paz, uma família tanto pode ser conforto, como também tormento. Cabe aos seus integrantes escolher por qual caminho seguir – e por onde agir – para não permitir que o medo tome conta, assumindo um protagonismo que talvez não fosse ambicionado, mas com o qual precisará conviver quando o que se almeja é não mais do que o silêncio tranquilizador.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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