Crítica
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Sinopse
Filha ilegítima de um coronel que comete suicídio, Juliana descobre que o pai foi torturador na ditadura militar.
Crítica
José Eduardo Belmonte despontou no cenário cultural brasileiro, em meados dos anos 2000, com filmes como A Concepção (2005) e Se Nada Mais Der Certo (2008), bem recebidos no circuito dos festivais e premiados no Brasil e no exterior. No entanto, desde Billi Pig (2012), sua primeira tentativa – frustrada, digamos – de realizar um cinema mais comercial, tem demonstrado uma inconstância enquanto contador de histórias, indeciso entre projetos ambiciosos e outros mais convencionais. O Pastor e o Guerrilheiro, seu longa mais recente (e o terceiro lançado no mesmo ano), aponta para uma retomada dos ideais do início de carreira, ao mesmo tempo em que reforça a necessidade de um diálogo mais amplo e inclusivo. Se alcança ou não estes intentos, é algo a ser discutido. Porém, a vontade de não se contentar com o óbvio e redundante existe. Tanto a partir do tema escolhido para o desenvolvimento deste projeto – já explícito a partir do próprio título – como, também, a real necessidade de se discutir constantemente um passado recente do país que não pode, nem deve, ser esquecido. Os elementos, portanto, estão todos em cena. A se lamentar, no entanto, apenas a combinação de uns com os outros, por vezes apressada, em muitas passagens um tanto desencontradas. Mas nunca desprezíveis.
Apesar do nome apontar para uma dualidade, há três linhas narrativas em curso. Se por um lado há o recrutamento e preparação para o embate de guerrilha no meio da selva – está se falando dos anos de chumbo da ditadura militar dos anos 1970 – de Miguel Souza (Johnny Massaro, entregue ao papel, em uma composição de forte mergulho, tanto físico quanto emocional), no outro extremo está a trajetória de Zaqueu (César Mello, de voz forte e postura correta, prejudicado por uma maquiagem limitadora quando mais velho, mas de fácil identificação durante os flashbacks), um religioso que é pego por engano pela polícia militar e enviado para a prisão por acreditarem que teria informações valiosas a respeito de atividades subversivas contra o governo desenvolvidas por outros membros da mesma igreja por ele frequentada. Quando Miguel é capturado, após sofrer por abandono, doenças e desnutrição, é levado para a mesma cela em que se encontra o homem negro que nada fez para ali estar, mas recorre a Deus na confiança de que de lá conseguirá sair vivo.
Os dois são reunidos pela ação do coronel Cruz (Ricardo Gelli), nome de destaque entre os repressores. É ele, também, que no começo da trama, de idade avançada, deixa antes de morrer tudo o que possui para a filha que nunca conheceu, Juliana (Julia Dalavia, sem conseguir oferecer o peso dramático que sua personagem exige, por maior que seja o seu – evidente – comprometimento). É com a chegada da notícia deste inesperado testamento que ela terá que lidar com uma herança ainda mais indesejada: seria filha de um torturador? Como os feitos desse homem que não mais existe podem afetar a mulher que ela é hoje? A partir dessa busca para entender sua origem, a jovem representa também esse país ainda muito novo, repleto de feridas, ansioso por cicatrizações que não podem ser apressadas, das quais só poderá se livrar com os medicamentos certos e a justa tomada de tempo.
Em 31 de dezembro de 1999, na suposta virada do milênio, esses dois solitários – Miguel e Zaqueu – prometeram, após terem se separado décadas antes, se reencontrarem no coração de Brasília, tanto num acerto com tudo o que viveram juntos, como num compromisso com o futuro, justificando uma prova de vida pela qual ambos se veem impelidos a ansiar. Porém, uma vez não mais trancafiados, há um desequilíbrio entre os personagens. Miguel, também chamado de João (seu nome de guerra), é não mais do que um fantasma, uma lembrança para alguns incômoda, para outros significativa de uma batalha que não acabou. Política de cotas nas universidades e maior representatividade econômica e social são alguns dos debates que seguem em pauta, mostrando o quanto o Brasil tem a avançar em termos de ajustes públicos. Juliana, aquela que tanto olha para trás como para frente, tem também os seus pesos para carregar (a avó doente, o ativismo universitário), enquanto Zaqueu, hoje um pastor responsável pela fé de muitos, lida entre o chamado religioso e a possibilidade de enriquecimento através do uso da crença de muitos. São temas pertinentes, porém não mais do que apontados, quando, de fato, justificariam uma reflexão mais detalhada e profunda.
Assim, Belmonte constrói um filme ambientado em duas épocas distintas – os anos 1970 e a virada de 1999 para 2000 – ao mesmo tempo em que consegue estabelecer diálogos diretamente relacionados com os 2020 de agora. Fala de uma guerra que segue em curso, de uma reza que persiste na busca por um terreno fértil a partir do qual possa crescer e se desenvolver, sem ser distorcida ou manipulada, e, mais do que tudo, dos reflexos destas dores na elaboração de um amanhã que privilegie o equilíbrio e a diversidade de opções. O Pastor e o Guerrilheiro peca somente por não se ater ao básico, agregando em seu discurso mais do que parece estar disposto a percorrer. Dono de um elenco coeso e de uma direção segura do alcance que tem em mãos, talvez pudesse ousar mais na forma, assim como teria espaço para tornar sua narrativa ainda mais difícil de ser ignorada. Menos novelesco – como reencontros à lá Tarde Demais Para Esquecer (1957) – e mais incisivo em suas atenções, é possível que a dimensão por esse argumento desenhada fosse ainda mais ampla. De qualquer forma, a retomada de um caminho sólido e relevante está em curso. O que não deixa de ser um ótimo sinal.
Filme visto durante o 55º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro
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