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Sinopse

Em O Penitente, a carreira e a vida pessoal de um psiquiatra começam a desmoronar após ele se recusar a testemunhar a favor de um ex-paciente violento e instável. A identidade do jovem paciente, a fé do médico, a fome de notícias e o julgamento, desencadeiam uma reação estranha. Premiado no Festival de Veneza 2023.

Crítica

Ao contrário do que muitos pensam, os filmes não devem ser medidos única e exclusivamente pela relevância dos seus temas. É comum nas resenhas e críticas da atualidade ser reproduzido esse reducionismo de que as obras valem o equivalente aos assuntos que abordam. Quem dera fosse possível “absolver” algumas realizações com base na pertinência do que elas manifestam, tendo como parâmetro principal o quanto suas discussões são importantes à sociedade. Porém, é preciso compreender de que maneiras as mensagens são expressadas e trabalhadas, de que forma os tópicos são construídos cinematograficamente. O Penitente é um desses longas-metragens que trazem questionamentos absolutamente pertinentes acerca de muitas coisas, mas de uma maneira pouco instigante. Trata-se de uma sucessão fria e burocrática de indagações morais, éticas, sentimentais, profissionais e religiosas, mas sem algo que as torne mobilizadoras. O protagonista é Carlos (Luca Barbareschi, também o diretor), psiquiatra envolvido num caso com altíssima repercussão da mídia. Ele era o terapeuta de um jovem norte-americano que abriu fogo contra seus colegas na universidade deixando oito vítimas fatais. Em busca de uma renovação da pauta, a imprensa atribui a ele a fama de persona non grata por suas supostas ideias homofóbicas. Depois disso, a vida de Carlos e de sua esposa se torna o verdadeiro inferno.

Selecionado para o 19º Festival de Cinema Italiano no Brasil, O Penitente é um filme de interiores, acontece basicamente em espaços fechados que então abrigam embates retóricos entre o protagonista e seus inquisidores. O roteiro é baseado na peça homônima do grande dramaturgo David Mamet (e ele assina o roteiro da adaptação) e mantém um quê de teatral nessa opção pelos debates em lugares delimitados. Cria-se entre Carlos e seus questionadores uma lógica de interrogatório. Por exemplo, quando a esposa (vivida por Catherine McCormack) pergunta a respeito das hesitações de Carlos, ele demonstra uma obstinação que pode perfeitamente ser confundida com teimosia, assim ficando à mercê de um julgamento. Como ele não escreveu que homossexualidade é aberração, por que não ir para o confronto e esclarecer o resultado da má fé da imprensa? Diante do advogado (interpretado por Adam James), Carlos é preso num redemoinho jurídico que não leva em consideração as complexidades do que está em jogo. Cara a cara com o procurador (vivido por Adrian Lester), tem ainda mais noção de como a legalidade é a base de um jogo de aparências. Há ainda a discussão implícita sobre a ação dos jornalistas, os dilemas instaurados na percepção de alguém que é cientista e religioso, além da observação a respeito do preço a pagar por respeitar a ética individual. Pena que num filme tão enfadonho.

O maior dos problemas de O Penitente é a direção Luca Barbareschi. Aparentemente, o cineasta acredita que para fazer jus a um texto provocativo basta colocá-lo na boca de personagens. No entanto, é preciso bem mais do que isso a fim de segurar a atenção da plateia por quase duas horas. As imagens de O Penitente são displicentes. A construção visual está baseada no princípio do “foque sempre no personagem que está falando”. Lembrem-se que se trata de um filme feito fundamentalmente de conversas com certo grau de tensão entre interlocutores. Quer dizer que a câmera nos impõe uma lógica de pingue-pongue cansativa, indo e voltando de acordo com aquele que detém a palavra. Em meio a isso, os cenários são ignorados em seu potencial narrativo, sendo unicamente os lugares onde os personagens estão. Luca não aproveita a clausura à qual o protagonista está sendo submetido pelas pressões públicas para criar uma atmosfera de claustrofobia que poderia acentuar a veemência das discussões. Em vez disso ele prefere uma mise en scène (a disposição dos elementos em cena) sempre beirando o registro burocrático. Assim, tudo o que importa está sendo dito, reiterado, questionado novamente para ser outra vez repetido, o que causa uma sensação de esgotamento precoce. Por fim, para coroar essa dinâmica cansativa há, provavelmente, a escolha mais debilitante da direção: a dublagem.

O Penitente se passa nos Estados Unidos. Os personagens são norte-americanos e claramente estão interagindo em inglês. Mas, inexplicavelmente, Luca Barbareschi dubla toda a trama em italiano, o que evidentemente desvirtua determinadas coisas, além de aumentar a sensação de artificialidade – que minimiza a possibilidade de uma adesão emocional do espectador. Como é parte essencial do filme, a dublagem cria uma névoa sobre a trama, sobretudo por dois motivos. Primeiro, porque ela força o aumento do tom emocional das interpretações. Não são poucos os momentos em que os atores estão se expressando num grau menor de expressividade do que apresenta a dublagem. Trata-se do diretor permitindo uma intensidade destoante do gestual, dos semblantes e de todas as demais ferramentas não verbais do elenco. Segundo, porque como é tecnicamente mal feita, a dublagem praticamente exclui os sons que não sejam falas e músicas incidentais. Então, por exemplo, quando Carlos presta um depoimento, mesmo que vejamos a estenógrafa datilografando as palavras numa máquina com algum nível de ruído, não escutamos qualquer som. Como exclui os barulhos do mundo, a dublagem cria uma incômoda sensação de que a única coisa a ser ouvida é a voz dos personagens. Tudo isso junto faz com que a experiência seja cansativa e pouco estimulante. O resultado é um filme tortuoso e cheio de boas intenções.

Filme visto no 19º Festival de Cinema Italiano no Brasil em dezembro de 2024.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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