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Sinopse

Numa estranha prisão vertical, detentos dos níveis superiores comem melhor do que os alojados nos andares inferiores. Um homem decide fazer algo para mudar o sistema.

Crítica

A potência da mensagem de O Poço reside nos dilemas, em como eles apontam, simbolicamente, a uma constituição coletiva capitalista. Tudo se passa numa prisão vertical. Cada nível comporta duas pessoas. Não se sabe ao certo quantos andares existem nesse prédio bizarro, apenas que os residentes dos superiores são privilegiados por desfrutarem da possibilidade de saciar diária e plenamente suas necessidades imediatas. Consequentemente, quanto mais para baixo, menos oportunidades de sobrevivência e, em semelhante medida, de manter-se civilizado. O protagonista é Goreng (Ivan Massagué), sujeito que escolheu levar ao cárcere um exemplar de Dom Quixote, quando muitos preferem carregar objetos mais práticos, como uma faca que se auto-amola, por exemplo. Trimagasi (Zorion Eguileor) lhe explica de modo quase pedagógico o funcionamento do lugar, didaticamente facilitando a ambientação concomitante do espectador ao valer-se das explanações.

Esse expediente não serve somente para evitar enganos, porque é entremeado por um discurso pujante. As questões principais passam inexoravelmente pela comida ofertada por meio de uma plataforma móvel que permanece dois minutos em cada nível. Obviamente, os de cima pegam as travessas e taças ainda cheias, enquanto resta uma crescente penúria na medida em que há a descida do banquete. O comportamento inicial de Goreng é idealista, de alguém que acredita na possibilidade de criar mecanismos para diminuir as desigualdades. Segundo ele, basta conscientizar os sortudos no sentido de que eles naturalizem um consumo sustentável, pegando das bandejas o estritamente necessário. É justamente Trimagasi que lhe abre os olhos quanto à dificuldade para fazer o humano ser razoável, especialmente porque há um revezamento mensal, ou seja, num dia você pode estar no sexto andar, fartando-se, e no outro bem para embaixo, passando fome.

O Poço, então, é uma metáfora incisiva desse mundo regido por uma economia neoliberal, em que o mercado aparentemente deixa à disposição as benesses de suas engrenagens, criando mecanismos para que a população, sobretudo a mais vulnerável, não tenha, sequer, tempo de teorizar acerca das ferramentas necessárias para equilibrar a balança. Em determinados momentos, é como se o cineasta Galder Gaztelu-Urrutia proferisse que o humano é essencialmente ruim ou fadado a atos atrozes, vide a transformação de atitude de Goreng. O protagonista gradativamente vai aderindo aos protocolos, encaixando-se em padrões até então por ele abominados, ao ponto de se alimentar de carne humana para não sucumbir de inanição. Todavia, habilmente, são atribuídas responsabilidades nesse disgnóstico cortante do sistema como responsável por suscitar o pior das pessoas. Não à toa, diante de uma proposta humanitária, alguém diz: “você é comunista?”.

Galder Gaztelu-Urrutia aproveita muito bem os espaços e as personalidades a serviço da potente alegoria. A troca de colegas faz Goreng entender melhor seu lugar nesse cárcere alimentado pela avareza e pelo sofrimento. A vocação por exposições não chega a incomodar, até porque a clareza da verbalização auxilia a sustentação de sutilezas em outras esferas, especialmente as comportamentais. A recorrência de figuras como a mulher em trânsito por conta da busca do filho igualmente enjaulado auxilia nesse processo de compreensão da conjuntura por perspectivas complexas. O Poço é um filme violento, que não poupa o espectador do espetáculo degradante motivado pelos dispositivos cruéis desse local delineado como um repugnante microcosmo social. Mesmo as fantasmagorias que perseguem o protagonista desempenham papel importante, por serem vozes da consciência, mesmo distorcidas, num lugar praticamente destituído de escrúpulos.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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