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Crítica


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Sinopse

A Coreia do Sul é atacada por uma bomba nuclear. Os membros de uma família resolvem se esconder num abrigo subterrâneo e lutar diariamente pela sobrevivência.

Crítica

O cinema está repleto de histórias em que o lado menos bonito da natureza humana emerge durante privações e/ou isolamentos. Em O Anjo Exterminador (1962), aristocratas descartam seus véus de civilidade à medida que não conseguem sair de uma mansão. No mais recente O Poço (2020), o confinamento numa prisão em níveis e a escassez de comida são alguns dos motivos que fazem os detentos se comportarem como animais primitivos. Em O Iluminado (1980), o exílio forçado pela nevasca intensifica a tensão entre o protagonista vivido por Jack Nicholson e sua família transformada em vítima. Neste sul-coreano O Porão, selecionado para a 12ª edição do Cinefantasy, pai, mãe e filha adolescente são obrigados a ficar trancados no porão da sua casa depois de um ataque nuclear. De acordo com os protocolos, em princípio eles precisam aguentar cerca de 14 dias para que as taxas de radiação baixem e sejam toleráveis pelo corpo humano. Além do encarceramento obrigatório no lugar pequeno e insalubre, a ausência de energia elétrica impõe outras restrições. Existe a óbvia necessidade de racionar a bateria dos celulares (aparelho utilizado como forma de se comunicar com o mundo externo) além da escuridão que tende a piorar as coisas. O cineasta Choi Yang Hyun reza pela bastante reproduzida cartilha desse tipo de filme, percorrendo caminhos conhecidos e não aproveitando as entrelinhas.

Primeiro, elege superficialmente a ignorância como um agravante. Os personagens não sabem exatamente o que aconteceu, somente adiante sendo esclarecidos pelos pronunciamentos que lhes chegam via ondas de rádio. Segundo, se contenta a descrever as novas regras que precisam ser seguidas para a família sobreviver. Lideradas pelo homem, esposa e filha são “doutrinadas” a racionar comida, a fazer necessidades fisiológicas num lugar específico, a obedecer uma rotina para utilizar os bens limitados, e por aí vai. Aliás, no que diz respeito a essa orientação pelas diretrizes masculinas, há dois ou três momentos de revolta feminina veemente. Porém, nada que permita a existência de um subtexto permanente. Voltando aos tópicos aplicados, em terceiro lugar vêm as rusgas que começam a se tornar frequentes na convivência absolutamente precarizada. A aparente harmonia da família sucumbe ao desespero crescente e individual de seus membros. E a adolescente é quem inicialmente acusa o golpe, metendo os pés pelas mãos com frequência e dando mais motivos para a discórdia entre pai e mãe. Pena que nem essas fissuras que poderiam revelar ressalvas anteriores à tragédia são bem trabalhadas pelo roteiro e pela direção. O realizador prefere estabelecer um tom sóbrio, investindo comumente na aridez e na falta de perspectiva. Ele elege o desencanto como sentimento que prevalece por ali.

Especialmente no momento em que vivemos, já há mais de um ano e meio tendo de nos acostumar com graus de distanciamento social impostos pela pandemia da Covid-19, uma obra como O Porão tende a causar imediata identificação: a irritabilidade gradativa, as diferenças ganhando volume, a convivência se tornando repetitiva e com isso agravando a situação. Tudo isso está devidamente contemplado no filme. Vemos o pai metido a sabichão tentando tranquilizar a esposa e a filha por meio de um conhecimento que certamente não alivia o desespero de ambas; as esparsas comunicações com o exterior não dando conta de tranquilizar os confinados; uns talvez somatizando e outros abalados efetivamente por doenças ocasionadas por motivos diversos; e a harmonia indo logo para o brejo. Mas, é de se lamentar que Choi Yang Hyun não mergulhe nos detalhes dessa circunstância. Ele prefere desenhar um jogo mais ou menos morno de ações/reações. Por exemplo: o homem consegue pensar numa alternativa à falta d´água; ele se vangloria disso; a esposa critica seu ego inflado numa situação limítrofe como aquela; e essa briga apenas gera uma tensão momentânea e logo dissipada. Diferentemente de outros filmes que utilizam o confinamento para enfatizar aquilo que vai quebrando as cascas construídas para viver em sociedade, aqui o foco se estreita na simples sobrevivência.

Choi Yang Hyun opta por não radicalizar a escassez e o obscurantismo. Sem energia elétrica, o trio é iluminado por velas e lanternas. Mas, em nenhum momento o breu é decisivo/ameaçador. Outro ponto não salientado pela encenação é a limitação do espaço. Os personagens lidam de maneira relativamente tranquila com o fato de estarem sempre juntos, de ter pouca privacidade e de serem obrigados a enxergar no semblante alheio o próprio desespero. E a ignorância tampouco é levada às raias do insuportável, inclusive porque o radinho explica a situação externa antes de algo estender o calvário. O realizador sul-coreano descarta uma total ausência de informações como algo que poderia tornar o confinamento ainda mais tétrico. Diferentemente de O Anjo Exterminador, filme de Luís Buñuel que aposta exatamente na falta de lógica para preencher o absurdo, aqui os personagens sabem os motivos que os impedem de colocar os pés para fora. As ranhuras familiares são sinalizadas, porém rapidamente passam a ser menos relevantes do que a necessidade de atentar ao fundamental: manter-se vivo. Desenvolvendo a tragédia com moderada veemência, O Porão tem um comprometimento ligeiro com as questões que vêm à tona, logo não as desenvolvendo como poderia. As dificuldades geracionais, matrimoniais, comportamentais e de outras ordens são apresentadas mas não ganham os holofotes principais. O filme não busca revelar a feiura do bicho humano acuado. Basicamente o entende enquanto vítima de uma circunstância que, infelizmente, nem sobressai pelo contorno geopolítico.

Filme visto online no 12º Cinefantasy, em setembro de 2021.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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