Crítica
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Sinopse
Irmãos e órfãos, Jonas e Rebeca moram com a avó debilitada num antigo casarão. E há uma criança misteriosa escondida no porão. Enquanto Rebeca quer mudar de vida, Jonas resiste ao ser assombrado por fantasmas.
Crítica
É estimulante testemunhar os primeiros passos de uma cineasta de talento. Sabrina Greve não é uma artista iniciante. Sua estreia nas telonas como protagonista, por exemplo, se deu em Uma Vida em Segredo (2001), da saudosa Suzana Amaral. No entanto, com O Porão da Rua Grito, Sabrina debuta atrás das câmeras, utilizando o terror como linguagem para contar uma história clássica de fantasmas, com direito a casas assombradas e à História teimosa em ressurgir como fantasmagoria. Antes mesmo de duas crianças conversarem em tom de conto da carochinha diante da foto esmaecida de uma tataravó que eles nunca conheceram de fato, os letreiros falam que o tal grito que batiza a rua paulistana não se refere ao reflexo diante do horror ou do espanto, mas do brado que selou simbolicamente a independência do Brasil às margens do rio Ipiranga. E essa citação não é gratuita, pois sinaliza ao espectador que o passado é um agente atuante no presente e ainda assim o será no futuro. A textura da imagem de vídeo caseiro nos mostra a festa de aniversário atravessada pela briga doméstica entre a mãe zelosa e o pai alcóolatra. O conflito é desenvolvido extracampo, ou seja, fora do quadro que mostra uma infância prestes a ser marcada pela tragédia. O salto no tempo que transforma crianças em jovens adultos não deixa essa trajetória simplesmente para trás. O passado é a principal assombração por aqui.
Jonas (Giovanni De Lorenzi) e Rebeca (Carol Marques da Costa) moram nessa casa atravessada por uma soma de descuido e obsolescência. Nas paredes da residência grande demais para pouca gente é possível perceber os efeitos desse passado imposto narrativamente como um algoz do qual não se consegue escapar. Os protagonistas cuidam da avó adoentada que praticamente não sai do andar de cima. Ela é uma espécie de personificação do imóvel, igualmente uma edificação em estágio avançado de decrepitude. Essa avó lembra aos netos cotidianamente das imposições do tempo. Embora seja uma comandante de primeira viagem, Sabrina Greve apresenta suas credenciais como cineasta ao construir um clima denso e opressor. Além da trilha sonora de Mateus Alves, repleta de tonalidades próprias ao horror – sobretudo os agudos do piano que cadenciam a expectativa –, a fotografia assinada por Marcelo Trotta se encarrega de transformar meras paredes, paisagens, transições e objetos em possíveis depósitos de mistérios. Como nos grandes filmes de terror, O Porão da Rua Grito não sobrevive apenas de sustos e outras estratégias menos elaboradas. Há uma preocupação com o desenho da atmosfera que deve servir de moldura para lembranças angustiantes e convivências caracterizadas pela dúvida. A primeira metade do filme traz uma habilidosa apropriação dos elementos básicos do gênero.
Quanto ao desempenho do elenco, Giovanni De Lorenzi sobressai como o jovem adulto atormentado, caracterizado pelo semblante carregado que denota a sua condição mental evidentemente inspiradora de cuidados. Ela se assemelha ao Norman Bates de Psicose (1960), especialmente em seus momentos de maior instabilidade, quando escancarada a insanidade que o leva a se transformar num homicida sem empatia pelo próximo. Já Carol Marques da Costa fica num registro menos marcado/tipificado, assumindo a tarefa de oferecer ao colega de cena um contraponto de “normalidade”. À medida que o contexto geral do enredo é consolidado, Sabrina Greve segue acertando na elaboração desse ambiente pouco convidativo – senão às nossas conjecturas sobre o que está acontecendo –, vide os ruídos da babá eletrônica servindo ao estranhamento e a câmera deslizando de modo indicativo pelo cenário a fim de manter a tensão. Exemplos disto são os movimentos de subida e descida das escadas de acesso ao porão. Pelo simples comportamento do dispositivo (lento, como se estivesse cauteloso), ficamos apreensivos de encontrar algo aterrador nessa descida de nível que pode ser encarada alegoricamente como descenso ao inferno da demência que pode ter origem mental ou ser ocasionada pelo sobrenatural. Mas, uma vez postas as cartas na mesa, o filme peca nos arremates.
O material de divulgação afirma que O Porão da Rua do Grito foi livremente inspirado em João e Maria – duas crianças abandonadas à própria sorte na floresta pelo pai e pela madrasta. No entanto, fica também evidente a relação com os irmãos contidos no clássico literário de horror A Outra Volta do Parafuso, de Henry James – duas crianças num casarão repleto de fantasmas que podem ser literais ou imaginados. A segunda metade dessa trama, cujo terreno é muito bem semeado e adubado, não é tão instigante quanto a primeira. A relação de Jonas com uma criança misteriosa que mora sozinha no porão não inspira tantas inquietações quanto poderia, uma vez que Sabrina deixa claros determinados dados sintomáticos (como o fato do terceiro elemento não interagir com ninguém além de Jonas). Outro ponto fundamental desenvolvido aquém de suas potencialidades é o violento ciúme que Jonas sente de Rebeca, especialmente quando entra em cena o interesse amoroso vivido por Giovanni Gallo. As repressões motivadoras não são bem exploradas, tampouco a natureza dessa intimidade ameaçada. Falta formulação sobre o que alimenta o desvario de Jonas e as respostas sãs de Rebeca àquilo tudo. Mesmo que capacidade da produção de hipnotizar o público caia sensivelmente com a adoção dos termos do gore, Sabrina Greve apresenta algumas credenciais empolgantes como autora.
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