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Crítica


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Sinopse

Androide programada com memórias que significam tudo para sua proprietária, Elli carrega fantasmas dentro de si.

Crítica

A atmosfera é vital em O Problema de Nascer. Estamos diante de uma ficção científica que não se demora em contextos, que evita explicar essa sociedade na qual androides transitam cotidianamente entre humanos, praticamente com eles se misturando em virtude da semelhança física. A prioridade da cineasta Sandra Wollner é romper a superfície, conferindo mesmo à criatura feita de ligas e circuitos artificiais uma suposta profundidade existencial. E isso fica claro pela maneira como o terreno habitado pelo “pai” apático (Dominik Warta) e pela “filha” robótica (Jana McKinnon) é compreendido como quase místico. É tudo bastante repetido, vide as várias vezes em que silhuetas recortam o horizonte (para gerar uma reflexão solitária) e memórias enxertadas para o dispositivo parecer gente são citadas. Curiosamente, o elemento perturbador dessa pasmaceira que logo se instaura é um incômodo diante de certa dinâmica incestuosa. Adiante, quando a trama dá uma virada, essa observação é iluminada pelo entendimento da boneca como meramente substitutiva.

O drama da protagonista é existir de acordo com a vontade alheia. O “pai” a utiliza para preencher as lacunas da possíveis ausências da filha e da esposa, haja vista a alternância entre as lógicas ternas e de sedução. Sandra Wollner se coloca friamente diante dessas perspectivas, não ensaiando estudar a solidão dele, quando muito sinalizando a subalternidade do ser inorgânico. Alguns planos geram desconforto, sobretudo os que apresentam a desnecessária nudez da pequena atriz. Era realmente incontornável, mesmo à apresentação da sexualização bizarra da manequim infantil, que a atriz fosse vista nua, pegando sol de bruços ou, adiante, sentada numa bancada com seu corpo desprotegido? Não que a realizadora hipersexualize a personagem. Ela mantém distâncias e pudores devidos, mas certamente deixa espaço para o questionamento ético acerca da conduta com a intérprete. Ademais, não investiga as psicologias, tampouco deixa qualquer traço singular da menina emergir. Sem focar-se detidamente em algo, evoca o vazio persistente em homens e máquinas.

Um desencontro permite ao filme ir a outro caminho, encarregado de apenas ressaltar, dentro da conjuntura diferente (não muito), o que já havia sido colocado. A robô se perde e vai parar na casa da idosa pesarosa pela longínqua morte do irmão. Mudando ligeiramente a chave, suavizando certa tendência ao abstrato e colocando na boca das pessoas o que antes buscava conjurar por meio dos sons e da imagem, Sandra Wollner esclarece a prioridade de mostrar a protagonista como substituta descartável e oca. Ela é rápida e literalmente reconfigurada de acordo com a necessidade de aplacar a solidão e o sentimento de culpa da senhora enervada frente às perguntas. Mas O Problema de Nascer continua tendo o agora menino como mero espelho no qual humanos projetam idealizações e frustrações, desenvolvido com tamanha acuidade que tem episódios de insônia por conta do medo da tempestade. A cineasta passa batido pela possibilidade de desdobramento dessa constatação de que a fim de parecer humano, é preciso que o títere mimetize fraquezas, hesitações e senões.

No primeiro segmento de O Problema de Nascer, a natureza capaz de isolar é uma espécie de moldura testemunhal do cotidiano marcado pelas carências do “pai” satisfeitas exatamente por força da enorme dependência da "filha" programada. Já no segundo, o espaço urbano é um cenário oposto à situação análoga se desenvolver sem tantas variações. É difícil identificar a perspectiva privilegiada por Sandra Wollner, pois toda vez que humanos aparecem como sombras projetada na androide, há um recrudescimento dessa posição e o redirecionamento à tragédia velada dela. A realizadora até busca lançar mão de engrenagens para tornar o filme bem mais sensorial do que necessariamente compreensível estritamente do ponto de vista das resoluções racionais. As reiterações, a introspeção confundida com apatia (aqui contraproducente) e as manjadas tentativas de expressar as interditadas dores enraizadas acabam depondo contra o resultado. Assim sendo, nos apiedamos das pessoas e dos robôs que sofrem constantemente nessas paisagens antagônicas, mas igualmente repletas de melancolia e dúvidas, entretanto, sem que isso gere um engajamento emocional duradouro.

Filme assistido online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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