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Sinopse

Joseph K acorda em seu apartamento sob custódia dos oficiais que o acusam de um crime não especificado. Ele é tragado por um redemoinho burocrático capaz de consumi-lo lentamente.

Crítica

“Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado em um inseto.”. Assim começa Franz Kafka a sua mais famosa obra literária, A Metamorfose, que mergulha o leitor em um pesadelo sobre auto-entendimento e rejeição conservadora do diferente. Aqui, quem acorda é Josef K. (Anthony Perkins), e o absurdo infortúnio que lhe aflige é descobrir-se acusado judicialmente de algum crime. Não entendendo o que se passa, pouco obtendo respostas coerentes de seus carcereiros e investigadores, K. se transfigura em um estranho vivendo no próprio universo, não muito diferente do inseto na casa dos Samsa.

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Adaptando a obra de Kafka com regular fidelidade, Orson Welles assume novamente os cargos de diretor, roteirista e ator, mesmo que muito coadjuvante. Traduz com eficiência a opressiva atmosfera burocrática do livro em que se baseia, usado para isso a linguagem que ele mesmo ajudou a estabelecer com o seu filme mais famoso, Cidadão Kane (1941). Assim, figuras ameaçadoras são sempre vistas em contra-plongée (de baixo pra cima), e aquelas em posição de fragilidade, sempre em plongée (de cima pra baixo). Além disso, sua fotografia rompe eixos e ângulos para priorizar enquadramentos que criam texturas com os objetos em cena, sejam eles centenas de mesas num galpão perdido no horizonte ou escadas e paredes que parecem aprisionar e encaixotar o protagonista, ainda que este não canse de avançar.

Fotografia e direção de arte se unem para gerar faixas de luz e padrões de repetição, como o corredor composto por finas tábuas espaçadas, ou aquele ladeado de gavetas de arquivos que vão do chão ao teto. São eles, mais as luminárias enfileiradas no teto de um galpão, ou as colunas na entrada de um banco, que transmitem a ideia de enfadonha recorrência. Algo que parece ser comum nessa estranha realidade em que K. é inserido, na qual réus aguardam com longos números pendurados no pescoço a vez de serem julgados. Um tribunal atulhado de cadeiras, onde um juiz sem qualquer bom senso ordena que a plateia aplauda ou ria dos julgados; onde não há provas apresentadas, apenas a forma inconformada com que as pessoas parecem perceber que K. não segue os procedimentos previstos para todos; por fim, onde as acusações não precisam de teor e motivação.

Ora, Kafka, no começo do século passado, já antecipava o que sociólogos modernos iriam discutir amplamente sobre “o estranho” e a massa acéfala e padronizada resultante do capitalismo. “Seja alguém na vida”, dizia uma tirinha que mostrava uma garota pouco a pouco desenhada igual a todas as outras figuras com quem dividia a ilustração, simbolizando que nossas tentativas de escalar um diferencial, galgando degraus colocados lá pelas pessoas de quem queremos nos diferenciar, apenas nos levam ao mesmo lugar delas. Sistemas são criados para organização. Organizações seguem padrões. Padrões aniquilam a potencialidade de singularidades, logo, de evolução. A nocividade de um sistema reside no fato dele acolher o indivíduo como algo natural, e então margeá-lo quando eventualmente ele não consegue se adaptar às suas rotinas. É uma forma de escravização voluntária, e a verdadeira decepção dessas pessoas deveria estar voltada aos padrões, não contra elas mesmas.

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Aí reside o crime de Josef K., interpretado com vivacidade e articulação pelo Anthony Perkins pós-Psicose (1961). Ele é consciente dos absurdos que lhe pedem, percebe que não existe fundamento na acusação, consegue enxergar que o sistema é baseado em si mesmo, de maneira retroalimentar. Por isso seus captores, juízes e executores servem a uma metáfora que vai muito além da crítica à burocracia estatal de qualquer governo, alcançando níveis de análise que se aplicam à religião, dogmatismos partidários e configurações sociais. Uma relevância construída por Kafka há quase cem anos que Welles, tão visionário em seu próprio campo de atuação quanto o escritor, ajuda a imortalizar através dessa que ele considerava sua melhor realização. E quando o cara por trás de Cidadão Kane – tido por muitos o melhor filme da história do cinema – diz algo assim, não se pode apenas relevar.

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é formado em Produção Audiovisual pela PUCRS, é crítico e comentarista de cinema - e eventualmente escritor, no blog “Classe de Cinema” (classedecinema.blogspot.com.br). Fascinado por História e consumidor voraz de literatura (incluindo HQ’s!), jornalismo, filmes, seriados e arte em geral.
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