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Para a cineasta Maria Augusta Ramos não há, sequer, sombra de dúvida. Foi golpe. Essa cristalinidade de intenções é o primeiro contorno a ser celebrado em O Processo, filme com alta capacidade de combustão em relação aos já acalorados dissensos políticos em voga no Brasil. Isso, num cenário que assumiu notas melancólicas com o impeachment de Dilma Rousseff. A narrativa proposta visa desnudar uma farsa, por meio da qual, de acordo com o posicionamento abertamente adotado, houve afronta à democracia e ao estado de direito. Não é, portanto, um longa-metragem de cunho jornalístico, ou, pelo menos, aferrado aos preceitos mais básicos do informar – hoje em dia tão vilipendiados –, como a necessidade de ouvir “o outro lado”, muito embora informações de bastidor deem conta da tentativa frustrada de aproximação da ala acusatória, que não aceitou o testemunho de suas privacidades enquanto os trâmites ocorriam. O que temos, então, é a construção gradual de um discurso, a serviço de quem acredita na injustiça cometida contra Dilma e seus pares.
Dito isso, é preciso atentar às filigranas de uma delineação retórica engenhosa, a começar pela questão do gênero. Dirigido por uma mulher, o filme é de certa forma protagonizado por outras duas, tornadas antagonistas exatamente por permanecerem em terrenos contrários da contenda que cindiu o Brasil em dois, grosso modo. Na ala petista, surge a senadora Gleise Hoffmann, tida como uma das principais articuladoras do amparo à presidenta questionada judicial e publicamente. Maria Augusta a pinta como uma intelectual que utiliza os meandros políticos para fazer prevalecer a manutenção da democracia, auxiliada muito de perto pelo também senador Lindberg Farias, aquele disposto ao confronto mais veemente, e José Eduardo Cardozo. Aliás, a erudição jurídica deste advogado de defesa é valorizada como uma espécie de voz da razão, entre tantos impropérios proferidos pelos colegas obviamente condicionados por interesses partidários e escusos.
O negativo de Gleise é a jurista e professora Janaina Pachoal, tratada pela câmera com um Bobo da Corte, designada pela parte reclamante para causar ruídos a fim de desviar o foco da verdade. É óbvio, além de eficiente, o procedimento de ridiculariza-la incessantemente, tornando engraçado, por exemplo, o simples instante dela tomando um achocolatado em meio aos ânimos exaltados nas comissões parlamentares. O Processo, dentro dessa clareza de objetivos, não se contenta, no entanto, a restringir-se instrumentalmente à utilização de imagens da TV Senado, da TV Câmara ou de outra fonte prévia qualquer. A forma como Maria Augusta acompanha o cotidiano da militância petista, inclusive dando espaço generoso para um mea culpa de dirigentes que reconhecem falhas administrativas e erros crassos que não deveriam acontecer, permite ao filme, mesmo abertamente partidário de um lado da disputa, alargar a sua abrangência, adicionando camadas ao desnudamento cinematográfico do golpe levado a cabo pelos representantes históricos do status quo.
Dentro dessa esmerada costura de fontes diversas, num trabalho de montagem hercúleo/louvável de Karen Akerman, não é menor a atenção dispensada por Maria Augusta a Gabriel, provavelmente colaborador de José Eduardo, figura periférica nas articulações. Embora desnecessariamente repetitiva, a reincidência na telona desse homem a priori menos proeminente, isso numa sala repleta de figurões popularmente conhecidos, deflagra a presença categórica e vital de um negro na mesa das negociações, mecanismo que, coadunando-se ao similar vislumbre recorrente de mulheres engajadas, consolida uma ideia de alinhamento da esquerda com as diversidades, não privilegiando uma casta. Portanto, dizer que O Processo é apenas valioso como peça de denúncia seria demonstrar miopia à ourivesaria gramatical de uma cineasta corajosa o suficiente para assumir a bandeira de suas convicções, não recorrendo canhestramente à utópica imparcialidade como argumento, gritando “foi golpe” a cada imagem, e defendendo que mais fortes são os poderes da verdade.
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