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Crítica


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Onde Assistir

Sinopse

Uma biblioteca pública de Cincinnati, em Ohio, é bastante frequentada por moradores de rua e pessoas com problemas mentais. A chegada do rigoroso inverno faz com que o local seja transformado pelos frequentadores num abrigo de emergência. Quando a polícia ameaça retirá-los a força, o caso se transforma numa rebelião de repercussões políticas e midiáticas impensáveis.

Crítica

Para descrever o confronto entre as classes desprivilegiadas e o poder político, entre o público e privado, o diretor e roteirista Emilio Estevez escolhe um interessante campo de batalha: uma biblioteca pública. O local ganha uma apresentação repleta de carinho através dos pedidos insólitos dos frequentadores, das provocações amigáveis entre funcionários, dos moradores de rua que encontram no local um abrigo do frio durante o dia, e da paixão assumida pelos livros e pelo que representam. “Alguém ainda frequenta uma biblioteca?”, provoca Angela, ao que o bibliotecário Stuart Goodson (Estevez) responde com um sorriso amargo. Ele não tarda a revelar que livros salvaram a vida dele, quando era dependente de álcool. A biblioteca se torna uma ferramenta de construção da cidadania, um parêntese de tranquilidade em meio ao caos de Cincinnati, e especialmente um local democrático, disposto a receber tanto acadêmicos respeitados quanto moradores de rua e pessoas com problemas mentais. Muito mais do que um espaço de leitura e de conhecimento, o local é elevado à metáfora máxima de inclusão, espécie de ponte entre o coletivo e o individual (um personagem, inclusive, passa os dias nos computadores públicos procurando uma namorada em sites de relacionamentos).

O roteiro de O Público (2018) possui a aparência de um drama baseado em fatos reais, ainda que não seja o caso. O diretor se lança numa fábula: quando o frio se torna severo demais e pessoas começam a morrer nas ruas, o protagonista acata a decisão dos frequentadores mais pobres, que se recusam a sair da biblioteca. A exigência destes manifestantes é ao mesmo tempo simples e absurda aos olhos dos personagens: eles só querem permanecer quentes, e não morrer de frio lá fora. Por isso, decidem dormir no espaço acarpetado. A premissa poderia se ater a um embate entre o bem e o mal, os caridosos e os poderosos. No entanto, o filme possui ambições amplas: o estopim da rebelião serve a discutir a invisibilidade das pessoas em situação de rua, o espetáculo midiático em torno de incidentes do tipo, a exploração eleitoral de manifestações pacíficas, o estigma de violência atribuído a pessoas em situações de crise. Estevez debate as falácias do salvacionismo (bela cena em que tenta dar dinheiro aos frequentadores, sendo contestado pela arrogância do gesto), o bom-mocismo fútil dos ativistas de Internet, e o discurso de quem aceita a pobreza extrema como algo inevitável, não cabendo portanto lutar contra (pensamento encarnado pelo personagem de Alec Baldwin, excelente em cena).

Tamanha ambição sociológica faz com que o resultado altere cenas muito fortes com outras de menor sucesso. Por um lado, a imagem de uma estante de livros servindo de barricada contra a polícia representa o valor do conhecimento enquanto arma. Alguns paralelos narrativos – a pizza barata no começo e a pizza mais caprichada, para os ocupantes, no final; a nudez de um homem considerado louco e a nudez enquanto gesto político – também desempenham um papel muito bom, fruto de um roteiro desenvolvido com atenção. Por outro lado, passagens visando profundo peso emocional soam anticlimáticas, especialmente no discurso ao telefone, inspirado no romance “As Vinhas da Ira”, de John Steinbeck, e na revelação do plano de Stuart para enfrentar os policiais. Ao menos, essas sequências desleixadas em termos de montagem provocam efeitos inesperados: no momento em que normalmente surgiria um discurso inspirador e humanista, as frases de um livro precisam falar por si mesmas. Quando se esperaria um confronto poderoso entre partes opostas, a solução encontrada aponta para uma saída simbólica. Talvez as cenas não sejam as mais profundas em termos narrativos, porém contribuem a atenuar o tom sentimental, propor uma comunicação com o público para além da esfera emotiva.

Esteticamente, O Público combina ideias ambiciosas da direção de fotografia com escolhas menos interessantes de montagem. O diretor Juan Miguel Azpiroz retrata o espaço da biblioteca com um fundo infinito, através de lentes grandes-angulares em longos planos, o que aumenta o escopo do local e favorece o elogio da literatura. Além disso, a amplitude da biblioteca torna os funcionários pequenos perto da imensidão de conhecimento ao redor, e contribui à sugestão de que existe um microcosmo à parte neste cenário, onde pessoas podem se cruzam e se perder. A câmera raramente passeia pelas estantes e prateleiras uniformes, preferindo os amplos corredores, a recepção e outras áreas de convivência. Uma improvável estátua de urso polar traz estranhamento, como se nos preparasse para a chegada de um dia violento na vida dos personagens. No entanto, as belas luzes e movimentos são prejudicados por uma montagem brusca de Richard Chew e Yang Hua Hu, que apostam em fades abruptos (como se não houvesse outra maneira de terminar uma cena), diálogos excessivamente cortados em plano e contraplano e algumas interrupções de cena com aparência de erro de montagem. Estes percalços não impedem a narrativa de correr de modo fluido como um todo, sustentando o bom ritmo ao longo de duas horas.

No papel principal, Emilio Estevez constrói a figura do anti-herói a quem é atribuída a tarefa do heroísmo. Stuart corresponde a sujeito tímido e pragmático, tendo aberto mão do idealismo de colegas mais jovens (a exemplo de Myra, interpretada por Jena Malone) em prol de uma convivência pacata e repetitiva, até ser incorporado, contra a sua vontade, numa luta que passa a defender. Talvez fosse ainda mais interessante se o rapaz não conquistasse uma bela mulher na primeira vez que a vê (personagem da talentosa Taylor Schilling, deslocada na trama), mas ainda assim, a idealização de Stuart é atenuada por meio da composição contida de Estevez – de olhos avermelhados, cansados, e corpo retraído – e da substituição da coragem inabalável por uma sucessão de esforços tragicômicos (as cenas da pizza, dos óculos e da nudez). O Público tenta equilibrar mais subtramas do que consegue desenvolver – a questão do filho do detetive e a batalha política entre prefeitos tornam-se superficiais -, porém demonstra vigor estético e discursivo. Por meio do pequeno incidente (afinal de contas, tudo gira em torno de algumas dezenas de homens dormindo numa biblioteca durante uma única noite), traça o retrato de uma nação que falhou na distribuição de renda e na igualdade de oportunidades. O diretor possui o mérito notável de articular um teor engajado sem recorrer à demagogia.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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