Crítica
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Sinopse
Em O Quarto ao Lado, filme de Pedro Almodóvar, Ingrid e Martha eram amigas muito próximas durante a juventude, quando trabalhavam juntas na mesma revista. Enquanto Ingrid tornou-se escritora, Martha seguiu carreira como repórter de guerra e as circunstâncias da vida as separaram. Após anos sem contato, elas se reencontram em uma situação extrema, mas estranhamente doce.
Crítica
Quando estava promovendo Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988) na corrida pelo Oscar 1989, Pedro Almodóvar recebeu um conselho de Billy Wilder, entusiasta de seu trabalho e um dos maiores gênios do cinema: “jamais caia na tentação de fazer um filme em Hollywood”. Era o aviso de um sujeito calejado pelas sucessivas batalhas travadas ao longo de décadas contra um sistema industrial para o qual o dinheiro fala mais alto do que a liberdade artística. De lá para cá, Almodóvar se consolidou como autor respeitado e, de tempos em tempos, flertou com a ideia de filmar nos Estados Unidos – ele foi convidado, entre outros, para dirigir O Segredo de Brokeback Mountain (2005). Realizados em inglês, os médias-metragens A Voz Humana (2020) e Estranha Forma de Vida (2023) davam indícios de que era questão de tempo para Almodóvar desobedecer a Wilder e comandar o seu primeiro longa-metragem com produção norte-americana. Eis que surge O Quarto ao Lado, um debute internacional mais europeu do que estadunidense, a julgar pelo estilo e pelas referências. Aliás, quem diria que em sua primeira experiência com longas falados em inglês o cineasta espanhol beberia tanto na fonte de Ingmar Bergman, o venerado cineasta sueco impregnado em cada plano dessa sóbria meditação sobre a morte que, na superfície, parece destoar da assinatura almodovariana, mas é todo Almodóvar?
Das duas protagonistas, primeiro vemos Ingrid (Julianne Moore), autora de um livro cujo assunto é a dificuldade para lidar com a morte. Na fila dos autógrafos ela identifica uma velha conhecida e o papo logo descamba para a revelação da doença seríssima de uma amiga de ambas. Martha (Tilda Swinton) descobriu que tem um tipo de câncer muito agressivo e, então, Ingrid resolve visita-la. Ora na cama do hospital, ora sentada com Nova Iorque ao fundo, Ingrid fala com Martha da finitude, mas não de modo distante, afinal de contas a morte está mais próxima do que ambas gostariam. Almodóvar bem que poderia ficar martelando nos obstáculos enfrentados por Ingrid para discutir algo tão incômodo, mas a isso prefere transformá-la numa ouvinte atenta das palavras da mulher que parece viver os seus últimos meses. Mesmo sendo um dos mestres do melodrama moderno, o cineasta espanhol evita qualquer rompante emocional mais agudo, a isso preferindo a gravidade impressa nas falas abafadas pela proximidade da tragédia. Não há um momento sequer em que alguém grita por conta da angústia. Já que é para conversar tão francamente com a morte, ao menos que se trave esse diálogo com equilíbrio e comedimento. O Quarto ao Lado dá seguimento, em chave ainda mais solene e austera, às reflexões sobre a mortalidade que o septuagenário Almodóvar apresentou no também bonito Dor e Glória (2019).
O Quarto ao Lado é seguramente o mais bergmaniano dos filmes de Pedro Almodóvar, alguém que frequentemente “rouba” (segundo palavras do próprio) de outros realizadores – como muitas vezes fez de Alfred Hitchcock. E Almodóvar não esconde as referências. Pelo contrário, pois elas estão explícitas como são boa parte das demonstrações de amor. A dinâmica feita de duas mulheres (enferma e cuidadora) se isolando numa casa vem de Persona (1966); a paciente moribunda obrigada a encarar a própria finitude vem de Gritos e Sussurros (1972); a dificuldade de relacionamento entre mãe e filha alude diretamente a Sonata de Outono (1978). Isso apenas para citar as conexões mais evidentes. Tilda Swinton compõe de modo monumental essa mulher melancólica e cada vez mais nostálgica em meio ao processo de digerir a proximidade do fim. Já Julianne Moore não fica atrás do quesito “força dramática” ao construir a companheira que aceita os termos alheios para garantir à amiga, ao menos, um restinho de vida digno e com ocasiões de prazer. Aliás, este é outro empréstimo que Almodóvar faz de Bergman: o instante de felicidade. Como acontece em alguns filmes do sueco, aqui o espanhol cria circunstâncias em que o drama parece suspenso. A vida assim valeria a pena, ainda que reduzida a esses breves episódios a serem repetidos na memória como cenas de um filme projetadas de novo e de novo.
E esses instantes de felicidade que amenizam a sensação de luto persistente estão geralmente atrelados à arte em O Quarto ao Lado. Como quando Ingrid e Martha assistem às gargalhadas um filme em que Buster Keaton desce um morro fugindo de um bando de mulheres e de pedras; ou na cena em que ambas falam de Os Mortos, livro de James Joyce pincelado em passagens que se tornam pequenas epifanias propensas a nos levar às lágrimas; ou ainda na hora em que Almodóvar coloca suas personagens para admirar um quadro de Edward Hopper, pintura que oferece a base para uma rima visual lindíssima quando o inevitável acontece. Nesse seu mais novo filme, Pedro Almodóvar utiliza um sem número de citações, também, para situar as suas protagonistas como membros da classe-média intelectualizada nova-iorquina. Porém, sempre evitando que elas sejam encaradas como esnobes descoladas da realidade. Como de costume no cinema do espanhol, cada objeto cênico é importante para definir a personalidade dos envolvidos. Na casa de Martha, por exemplo, há uma coleção de objetos significativos atestando o seu ecletismo estético, vide as pinturas modernas convivendo com as fotografias e a fruteira em forma de cacho de bananeira – apetrecho digno dos filmes desvairados de Almodóvar, mas aqui colocado em cena como um item sutilmente destoante que confere vivacidade ao quadro.
Mesmo que faça um filme sobre a inevitabilidade da morte (outro tema caro à obra de Ingmar Bergman), Pedro Almodóvar brinca com camadas de irrealidade nos flashbacks, tanto o que mostra Martha como correspondente de guerra quanto aquele no qual vemos a protagonista moribunda se relacionando com seu antigo amor. Amante dos artifícios (vide os cenários falsos e as vozes dubladas de Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos; o amor destrambelhado de Ata-me, de 1989; etc.), Pedro Almodóvar rapidamente escapa à rigidez do realismo para criar momentos meio tom acima do natural como uma estratégia para diferenciar fatos, memórias e relatos. Nas longas conversas entre Ingrid e Martha, a morte vai deixando de ser a inimiga indesejada e, uma vez inevitável, passa a ser a companheira com a qual é preciso se acostumar. Quando Ingrid decide pela eutanásia, seu humor curiosamente melhora, pois a finitude deixa de ser uma possibilidade assustadora ao se transformar em certeza. Se não há remédio, remediado está. Já Martha, mesmo sem perceber, vai recebendo uma espécie de educação intensiva para lidar com o fim. Justo ela que escreveu um livro a respeito das dificuldades para encarar como natural o término de tudo. Por fim, que angustiante o suspense criado por Almodóvar a partir da porta do quarto de Ingrid nessa meditação serena sobre algo tão devastador quanto a morte.
Filme visto no 26º Festival do Rio em outubro de 2024.
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