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Sinopse

Numa pequena comunidade de imigrantes italianos incrustada na serra gaúcha, dois casais dividem o mesmo teto. Nessa trama ambientada em 1910, paixões interditadas surgirão para bagunçar essa dinâmica sentimental.

Crítica

Uma das pedras fundamentais da Retomada do cinema brasileiro nos anos 1990, O Quatrilho é ambientado no começo do século 20, com foco nos imigrantes italianos da serra gaúcha. Ao largo da história de amores que desafiam convenções, o filme dirigido por Fábio Barreto com base no livro homônimo de José Clemente Pozenato apresenta uma esmerada reconstituição de época para documentar essa fatia histórica pouco estudada para além da verdejante região do Rio Grande do Sul. Há uma dicotomia fundamental que, inclusive, determina separações e novos enlaces. De um lado, os românticos, aqueles que não estão necessariamente preocupados com acumulação de terras e afins. Do outros, os pragmáticos, crentes na urgência da prosperidade financeira para alcançar um estágio próximo do que concebem como a tal felicidade. A sonhadora Teresa (Patricia Pillar) contraiu matrimônio com o prático Angelo (Alexandre Paternost). Já o bon vivant Massimo (Bruno Campos) constituiu família com a objetiva Pierina (Gloria Pires). Os dados à emoção se atraem tão logo se cruzam; os mais inclinados à razão apenas se permitem querer pelas circunstâncias.

Tratando esse universo com uma boa dose de curiosidade acerca de costumes, práticas e outros elementos inerentes à cultura, Fábio Barreto valoriza o conjunto de rotinas em meio às desventuras sentimentais e olhares que denotam intenções interditadas pelas regras sociais vigentes. Especialmente para quem conhece a região na qual a trama se passa, é relativamente simples identificar dinâmicas e pensamentos por lá  frequentes, alguns deles intrínsecos à natureza provinciana dos espaços distantes das metrópoles. A arquitetura do período, preservada em recantos nostálgicos de cidades como Caxias do Sul, Bento Gonçalves, Farroupilha, Carlos Barbosa e Antônio Prado, ajuda a tornar mais verossímil essa narrativa que, também para isso, se vale de figurinos puídos e cuidadosamente tratados. Ainda no que diz respeito à consistente menção ao período compreendido entre 1910 e 1930, o filme faz questão de sublinhar certas liturgias cotidianas de então, vide o amasse da uva com os pés, bem como a posição que homens e mulheres ocupavam na sociedade florescendo, as relações entre empresários prósperos e Igreja Católica, entre tantos indícios do mundo novo.

O Quatrilho, no entanto, perde pontos por conta do roteiro didático. Esse contorno pedagógico, encarregado de diminuir as arestas, é sobremaneira perceptível na forma como as sequências são encadeadas. É comum um personagem mencionar que vai fazer certa coisa e, subsequentemente, Fábio Barreto apresenta-lo realizando exatamente aquilo. Esse tipo de procedimento enfraquece a dimensão puramente sensorial de um longa-metragem que poderia, tranquilamente, tirar mais proveito da boa fotografia de Félix Monti para criar uma potente impalpabilidade. Outra característica que depõe contra o resultado é a mão pesada da direção, ora responsável por tornar certos momentos demasiadamente indutivos – com isso restringindo o espaço ao espectador que intenta desempenhar sua função ativamente – ora por se limitar a propor uma encenação banal, com predominâncias do plano/contraplano especialmente nas contendas sentimentais. Já quanto ao elenco principal, seus integrantes se acomodam com facilidade em papeis deliberadamente arquetípicos. Gloria Pires, por exemplo, a com menos espaço para expressar-se, ganha uma cena para verbalizar a hipocrisia da localidade diante de sua escolha de vida. O discurso político igualmente se faz presente por estas bandas.

Não à toa, há dois padres em O Quatrilho. O primeiro, vivido por Gianfrancesco Guarnieri, é um observador humanista, capaz de prever a infelicidade provocada pela obsolescência do entusiasmo no decorrer do matrimônio. Sua itinerância denota a liberdade de pensamento mais associada à análise cuidadosa das vicissitudes. Já o pároco interpretado pelo não menos eficiente Cécil Thiré flerta com a caricatura exatamente porque sua função ali é representar um pensamento clerical então sintomático das engrenagens de uma instituição inclinada ao conservadorismo. Iscariot (Pedro Parente) é a voz anarquista da comunidade fundada numa ideia tradicional de moral e bons costumes. Ele esbraveja contra o capitalismo, se prontifica a associar-se momentaneamente com o próspero Angelo, primeiro, por ter uma queda pelos marginalizados, e, segundo, para com isso ter torque na luta contra a Igreja. No fim das contas, O Quatrilho demonstra uma força bem maior no desenho dessa região em acelerada transformação e de seus padrões cartesianos/patriarcais. No que diz concerne aos romances entrelaçados, eles acabam sendo meros sintomas da divisão entre emoção e razão.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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