Crítica
Leitores
Sinopse
Ada tinha apenas 19 anos quando um homem que ela conhece a convida para jantar. Tudo corre tão depressa, no entanto, e não consegue se defender dos avanços sexuais. Depois de muito tempo, ela ainda tem a dificuldade de aceitar sua condição de vítima de um estupro. Diversas atrizes são convidadas para encenar o episódio envolvendo Ada.
Crítica
Este projeto se inicia sem apresentar seu tema ao espectador. Por mais comum que seja a presença de entrevistados se dirigindo à câmera, a relação se torna menos clara quando se trata de anônimos discorrendo sobre uma questão não anunciada. Uma mulher, no caso, começa a narrar uma história de amor rompida, e depois o contato ambíguo com o namorado de uma colega. Aos poucos, o relato se transforma numa aproximação indesejada com este rapaz, o que se transforma numa narrativa de estupro. Até que – surpresa – a montagem suspende a cena e apresenta outra atriz completamente diferente, continuando o texto anterior. Percebe-se, então, a presença de um texto escrito e um dispositivo cênico em estilo “jogo de cena”, no qual interpretações distintas são fornecidas a partir do mesmo episódio.
A presença de atrizes transforma a relação com o espectador: cria-se um distanciamento a respeito da expectativa da confissão às câmeras e de um sofrimento real. O processo de ficcionalização chama atenção ao próprio dispositivo, ao invés de dirigir o foco apenas ao tema. Ao mesmo tempo, a vítima real do estupro torna-se ausente nas imagens. Sua identidade é preservada, enquanto a pluralidade de vozes faz com que o caso se estenda, simbolicamente, a todas as mulheres. Através de atrizes jovens e experientes, brancas e negras, belgas e estrangeiras, a história encontra a sua universalidade. Isso significa que, para além da brincadeira de estabelecer diferentes registros de leitura – uns mais emotivos, outros mais frios – a decisão de multiplicar os pontos de vista produz uma consequência importante à representação desta vítima ausente.
A diretora Alexe Poukine vai além ao dar voz igualmente a mulheres lésbicas, a homens heterossexuais e homens gays, lendo o mesmo texto. Às mulheres homossexuais, resta a lembrança de que o abuso pode ocorrer entre dois corpos femininos, ou seja, sem a presença do falo, enquanto aos homens, de qualquer orientação sexual, sugere-se que qualquer figura masculina constitua um estuprador em potencial. O Que Não Mata não aborda apenas o imaginário do homem capturando sua vítima numa rua escura, e forçando o sexo brutal em local público, mas qualquer tipo de relação sexual não consensual, inclusive entre namorados. Assim, os homens são levados a questionarem seu histórico com mulheres/homens, caso em algum momento tenham forçado o/a parceiro/a para além do consentimento.
Como a narrativa se move unicamente por monólogos e diálogos de pessoas sentadas atrás de suas mesas, o trabalho estético se limita à sucessão de episódios, ou esquetes em enquadramentos fixos, longos, sem cortes internos. Deixa-se que cada atriz ou ator forneça a sua leitura e depois, fora do personagem, comente a dificuldade do texto e sua relação com esta mulher invisível que, uma vez estuprada, volta a rever o estuprador. Questiona-se o julgamento moral, inclusive das próprias mulheres, além do olhar excessivamente racional a casos desprovidos de razão. Felizmente, ao invés de se limitar ao grito de alerta, a cineasta transforma este procedimento num questionamento social e uma investigação psicológica.
Ao mesmo tempo, uma vez exposto o dispositivo, ele não sofre qualquer transformação notável. As cenas se sucedem, lineares, durante toda a narrativa. Juntas, compõem um painel de ampla representatividade, porém pouco ambicioso em termos cinematográficos. Seria curioso imaginar o que a direção poderia fazer com a alternância de planos, com a dissociação entre som e imagem, com o uso dos sons e referências fora e quadro. Ora, O Que Não Mata privilegia tamanho naturalismo que sequer imprime qualquer diferença estética entre as encenações a partir do texto escrito e as conversas espontâneas com as atrizes – o que produz um interessante efeito de adivinhação entre ambos. Para um conteúdo perturbador, escolhe-se uma estética inofensiva. Poukine sublinha somente o humanismo do tema, sem buscar alguma construção do humanismo nas formas.
Filme visto na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2019.
Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)
- O Dia da Posse - 31 de outubro de 2024
- Trabalhadoras - 15 de agosto de 2024
- Filho de Boi - 1 de agosto de 2024
Deixe um comentário