Sinopse
Crítica
Há dois filmes distintos dentro de O Rapto (2017). O primeiro consiste na trajetória de empoderamento de Charlotte Lockton (Alice Eve), uma mulher do século XIX cujo bebê é sequestrado durante um assalto. Na cena inicial, ela aprende a manejar uma arma, ainda que timidamente. Nas ruas da cidade, descobre as mulheres lutando pelo direito de votar. Quando a busca do filho se cruza com a viagem de um grupo de prostitutas, descobre a vida difícil dessas mulheres. O diretor Niall Johnson e a roteirista Emily Corcoran acreditam estar construindo uma fábula feminista sobre uma dona de casa que descobre sua autonomia ao empunhar uma arma. O segundo filme, no entanto, aborda a história de uma pobre mãe, uma vítima da sociedade, cujo amado marido é morto por bandidos, e o filho, sequestrado. Ela precisaria então enfrentar uma epopeia de sofrimentos até reencontrar a felicidade. Ou seja, a segunda vertente proposta pelo filme se traduz na jornada de uma mártir pelo banditismo das zonas rurais da Nova Zelândia.
O problema se encontra no fato de que os dois discursos são incompatíveis, e mesmo opostos. Por um lado, Charlotte é uma mulher forte, e por outro, incrivelmente frágil. Ora ela tem um revólver na mão, ora vira o rosto quando se encontra perto de um homem prestes a morrer. Ora ela se dispõe a integrar o prostíbulo das colegas enquanto procura o filho, ora fica incrivelmente chocada quando um cliente deseja lhe beijar. Ela às vezes se revela astuta, investigando sorrateiramente o paradeiro da criança, porém em outras cenas age com uma ingenuidade inacreditável, gritando o nome do bebê sequestrado a todos os passantes. O filme gostaria que ela fosse ao mesmo tempo maliciosa (no sentido de esperta) e tola (no sentido de pura), sexualizada (para os prazeres da imagem) e intocada (pelos imperativos da moral), feminista (ela se impõe diante de homens brutos) e “sexo frágil” (ela constantemente necessita da bondade de estranho). Os criadores precisariam definir qual visão possuem da mulher e da sociedade para evitar uma versão tão genérica de sua heroína.
No papel principal, Alice Eve não ajuda muito. A atriz demonstra pouca expressividade dentro de um gênero propenso às lágrimas e ataques de fúria. Talvez ela não precisasse resgatar o sentimentalismo exagerado de uma Angelina Jolie em A Troca (2008), mas um mínimo de apego, insegurança ou dúvida cairiam bem à mãe que acaba de perder o bebê. Eve jamais demonstra dúvidas sobre seu percurso, medo diante de uma arma carregada ou ainda pavor em face de uma ameaça de estupro. Com os olhos firmes ao horizonte, ela às vezes deixa a boca entreaberta, em outros instantes, mexe no cabelo. A complexidade emocional da personagem passa longe desta composição maquínica. No entanto, a responsabilidade não recai apenas sobre os ombros dela: o roteiro tampouco ajuda com tantas ações absurdas relacionadas aos homens abusadores. A montagem aposta em tantos saltos temporais que impedem o aprofundamento psicológico: após a rápida e escura cena do rapto, o filme salta três meses para o instante em que Charlotte decide partir. A dor, a dúvida e o luto foram suprimidos pela montagem e pelo roteiro. Entretanto, este processo seria fundamental para o espectador se identificar com a mãe abalada e torcer por ela.
Por estes motivos, a protagonista se resume a um corpo em deslocamento, cujas motivações soam incompreensíveis: podendo ficar o tempo que quisesse na cidade onde provavelmente se encontra o bebê, por que daria a si mesma o prazo de três dias? Por que fica tanto tempo presa dentro do prostíbulo quando se descobre, logo depois, uma porta lateral sempre aberta? Como ela poderia acreditar que, apenas por colocar um minúsculo chapéu e um casaco, passaria despercebida no vilarejo inteiro? O filme exige clemência do espectador quanto aos seus exageros e concessões à lógica. Isso inclui pessoas dando lições de moral aos inimigos antes de matá-los e mocinhas nocauteando o adversário e correndo sem aproveitar a oportunidade de eliminá-lo de vez. Seria possível apontar a fotografia escura demais, cuja textura exageradamente nítida soa contraproducente para um filme de época, além de alguns movimentos bruscos de câmera, de um uso genérico de paisagens (que se parecem com os cartões postais de qualquer loja de presentes) e sobretudo da trilha sonora genérica, capaz de arriscar um pop cristão na cena final. Todos estes aspectos atrapalham, mas nenhum chama mais atenção a si do que os demais.
Talvez O Rapto se ressinta da falta da figura de um produtor firme. Falta a presença de um elemento centralizador, capaz de apontar as abordagens inconsistentes da estética e do discurso, além da condução confusa dos atores e da montagem. Os caminhos aos quais o filme acena são possíveis e legítimos, e talvez resultassem em obras melhores caso fossem coerentes com suas próprias estruturas – seja o filme de redenção pessoal, com vocação cristã; a fábula política em moldes “uma mulher com uma pistola”; o melodrama clássico da mater dolorosa disposta a qualquer coisa para ter seu filho de volta; o faroeste feminista; o drama histórico de vocação político-geográfica sobre as relações entre Inglaterra e Nova Zelândia. No entanto, esta produção soa caótica, como se diversos pontos de vista diferentes fossem forçados dentro de uma única narrativa. A cena final, o cúmulo do kitsch, remete aos telefilmes da Lifetime Movies – mais um estilo que não tinha sido abordado até então. O Rapto traz a curiosa aparência de um filme com estrutura digna de um resultado profissional, porém entregue às mãos de amadores.
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