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Sinopse

Em meio à crise política, social e econômica pela qual o Brasil passa, João, um jovem e talentoso médico em ascensão, consegue rapidamente subir os degraus de sua carreira. No entanto, acaba encarregado de uma tarefa ingrata: supervisionar a transferência de pacientes entre hospitais quando mais um hospital público da cidade do Rio de Janeiro é fechado por falta de verba. Quando tudo parece correr dentro da normalidade, uma das pacientes desaparece no meio da noite, levando João para uma jornada em um mundo obscuro e perigoso.

Crítica

Há uma máxima que afirma que o cinema brasileiro tem pouca intimidade com alguns gêneros cinematográficos. Como o terror, por exemplo. A produtora Lupa Filmes é um bom atestado desta verdade. Em 2009, ela deu início, simultaneamente, a dois projetos: a comédia romântica Mato Sem Cachorro (2013) e o suspense O Rastro. O primeiro chegou às telas quatro anos depois e foi um sucesso com mais de um milhão de espectadores. Já o segundo, levou o dobro do tempo para ser finalizado, custou mais e entra agora em cartaz sob expectativas não muito estimulantes – afinal, pesquisas indicam que o espectador local costuma gerar uma renda média de R$ 70 mil para cada produção nacional deste estilo, enquanto que longas estrangeiros similares geralmente registram por aqui arrecadações até dez vezes maior. O trabalho de estreia do diretor J. C. Feyer poderia, tranquilamente, quebrar esse paradigma, pois possui os mesmos elementos presentes em seus pares, independente da nacionalidade destes. E isso é tanto um elogio quanto um demérito.

Assim como aconteceu no recente Sob Pressão (2016), O Rastro também tem como principal cenário um hospital público no Rio de Janeiro. Aqui, no entanto, a situação é tão caótica que, segundo o governo, é irreversível – ele terá que ser fechado. O responsável por conduzir esse processo é o doutor João (Rafael Cardoso), em uma missão que o colocará em confronto direto com seu antigo mestre, Heitor (Jonas Bloch), atual responsável pelo lugar. João está seguindo ordens do chefe (Felipe Camargo), mas ele é um homem pragmático, nitidamente carreirista, preocupado em fazer o melhor do que esperam dele. Após uma ordem de proibir a internação de novos pacientes, no entanto, fica sabendo que uma garota foi recebida na mesma manhã e agora está sob seus cuidados. Antes de decretar o fim da antiga casa de saúde, ele precisa cuidar da remoção de todos os enfermos. Inclusive da recém-chegada.

Mas como agir quando a menina, simplesmente, desaparece? Não há registro do seu destino, ninguém a viu e pouca ajuda João recebe. Ao tormento que lhe abate, com pressões vindas de todos os lados, soma-se a própria situação familiar, com a esposa (Leandra Leal) grávida e precisando de atenção, além do calor que parece derreter a tudo e todos na capital carioca. Os nervos estão à flor da pele. E as reações podem ser as mais inesperadas. Em paralelo, acompanhamos o caso envolvendo o atual candidato ao governo do Estado (uma das últimas aparições de Domingos Montagner), o líder das pesquisas que, entretanto, luta para negar as acusações de seus concorrentes de que estaria sofrendo de um problema no coração, o que o impediria de cumprir o mandato caso seja eleito. Quais as relações deste episódio macro com o desespero enfrentado pelo nosso protagonista é apenas um dos mistérios propostos pelo enredo de O Rastro.

O quadro desenhado, como se percebe, é intrigante. E Feyer é competente o suficiente para dotá-lo de mais elementos de interesse. O visual é rebuscado, sempre buscando ângulos escusos e opressores, como que refletindo os sentimentos internos de cada um dos personagens. A esposa desamparada, o jovem médico querendo se mostrar aos seus superiores, o antigo profissional lutando pelo que acredita e o burocrata que de forma evidente guarda para si intenções secretas. Há ainda, em participação quase especial, a médica que acaba servindo de ligação entre João e Heitor – a assistente deste, Olivia (Claudia Abreu, com pouco a fazer). O elenco é coeso, porém demasiado e sem funções muito bem definidas. Lá pelas tantas, o espectador se pega perguntando qual o propósito de cada um e como podem colaborar na evolução da trama.

Se o diretor acerta na concepção e parece não temer escolhas mais ousadas, com reflexos evidentes de Hitchcock e até James Wan, por outro lado dá a impressão que não conseguir dosar com a mesma tranquilidade todas essas influências. Um ponto em particular acaba destoando no conjunto: o uso inadequado, para não dizer exagerado, da trilha sonora, sempre didática em demasia, informando ao público cada susto prestes a acontecer, funcionando como uma bula de orientações. E subestimar sua audiência nunca é uma aposta segura. Por outro lado, há fatores em particular que se destacam, como a fotografia detalhada e muito bem trabalhada e a performance do elenco principal – Rafael Cardoso, em particular, é feliz em criar uma figura tão convincente que chega a impor uma bem vinda dúvida sobre sua real sanidade. O Rastro pode resvalar aqui e ali – o final é, particularmente, problemático – mas, no todo, revela-se uma boa bússola para os admiradores desse tipo de narrativa no país. Há um caminho longo a ser trilhado, não se questiona, mas após talentos pontuais como José Mojica Marins e Rodrigo Aragão, é possível que se esteja, enfim, criando-se uma escola de terror com um convincente sotaque verde e amarelo.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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