Crítica
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Sinopse
Selah cresceu dentro de uma seita religiosa comandada pelo pastor Michael. O grupo, formado por uma dezena de esposas, além de filhas mulheres, sempre admirou este homem abençoado. No entanto, conforme Selah cresce, a jovem descobre que talvez o líder do grupo não seja uma pessoa tão bondosa quanto parece.
Crítica
O Rebanho (2019) introduz o espectador a uma ambientação, ao invés de um cenário e uma temporalidade precisos. Jamais saberemos ao certo onde se situa a trama, nem sua duração: o conjunto adquire a aparência de sonho, ou pesadelo, descolado da realidade vizinha. Policiais e outras figuras urbanas são vistos de longe, ou apenas citados ao longo da narrativa. A diretora Malgorzata Szumowska justifica esta escolha fabular pelo ponto de vista da protagonista Selah (Raffey Cassidy), uma pré-adolescente nascida dentro do grupo religioso, e ignorante quanto ao mundo ao redor. Como ela nunca interage com cenários para além do vilarejo onde habita, o espectador tampouco descobre elementos capazes de contextualizar esta experiência antropológica. No rebanho do pastor Michael (Michiel Huisman) existem cerca de dez esposas, além de um número equivalente de filhas mulheres. Nenhum homem penetra a comunidade. Ora, o que acontece com bebês homens nascidos dos relacionamentos poligâmicos? De que maneira as mulheres chegaram até o pastor, e como se constituíram as rígidas regras de conduta pelo líder? A garota nunca questionou o pai. No entanto, conforme cresce, passa a indagar esta estrutura.
O filme pode ser lido pela perspectiva de uma coming of age story, ou seja, uma narrativa de passagem à fase adulta, quando crianças e adolescentes perdem a inocência diante dos males da civilização. A produção de terror dá um passo além: embora seja contida na utilização de cenas sangrentas, explora em profundidade a manipulação psicológica das mulheres pelo profeta autodeclarado, fornecendo sugestões potentes de abusos e de Síndrome de Estocolmo. Evitando diálogos explicativos, a cineasta prefere que o dia a dia das mulheres revele por si mesmo os códigos de conduta, incluindo rituais, práticas sexuais, divisão de tarefas e a relação com o transcendental. O roteiro de Catherine Smyth-McMullen efetua uma junção orgânica entre o cristianismo extremista (diversas práticas são extraídas das religiões neopentecostais) e o paganismo de cultos habituados ao sacrifício de animais e às catarses coletivas. As noções de purificação e de pecado, de pacifismo e violência, são exploradas em curto-circuito: após uma demonstração de carinho do pastor, uma irrupção de ira demonstra o poder do homem diante de seu rebanho. Michael governa pelo amor e pelo medo, em igual proporção. O texto oferece pontes férteis para o espectador associar estas práticas condenáveis a elementos próximos da realidade contemporânea.
Apesar da complexa leitura psicossocial, O Rebanho se desenvolve através de uma pesada maquinaria estética elaborada por Szumowska. As imagens rebuscadíssimas chamam atenção a si próprias, para o bem ou para o mal: cada enquadramento resulta de uma composição precisamente orquestrada em termos de luz, profundidade de campo, disposição dos corpos e duração. A direção de fotografia efetua violentos zoom ins rumo ao corpo das atrizes, representando a violação de suas identidades, enquanto ilumina cada casebre ou passeio pela floresta com o preciosismo de uma gigantesca fantasia hollywoodiana. Desenham-se sequências impressionantes à beira de um penhasco, durante um ritual, na travessia pelo rio e durante a expiação das mulheres. Os cabelos impecavelmente arrumados e as roupas ajustadas à perfeição ao corpo das mulheres são banhados por um contraluz dourado, além de uma leve brisa provocando o movimento dos tecidos. Não há chuva, neblina, dias brancos, lama. Michael parte em busca de seu Jardim do Éden à medida que o projeto oferece sua concepção de um ideal monstruoso, pois mascarando inúmeros atos de agressão.
A beleza ostensiva decorre tanto das escolhas cirúrgicas da diretora quanto da produção luxuosa da Zentropa (responsável pelas obras de Lars von Trier). Entre os diretores que adequam sua câmera ao mundo, extraindo espontaneidade e naturalidade, e aqueles que criam um mundo para se encaixar às exigências da câmera, a artista polonesa se encaixa na última categoria. A mise en scène transparece uma impressão de asfixia e ornamentação ao extremo: nenhuma composição aproveita o acaso, ou possibilidades inesperadas do cenário ou dos atores. Pelo contrário, os intérpretes param nos pontos exatos do enquadramento; caminham até o milímetro preciso da floresta em que seus rostos são banhados por um feixe de luz; movimentam-se sedutoramente em câmera lenta. Há um aspecto de sensualidade na representação destas mulheres exploradas, algo que talvez incomode pela romantização do calvário. O estetismo de Szumowaska vai tão longe que, nas sequências finais, as atrizes aparentam posar para um ensaio de moda da revista Vogue. Com exceção dos nomes principais, a galeria de coadjuvantes se presta a um trabalho mais fotográfico do que cênico. Felizmente, a ótima Raffey Cassidy possui uma força animalesca no olhar, visível em cada cena, em contraste com a placidez excessiva de Michiel Huisman, que talvez pudesse conferir maior ambiguidade ao homem controlador.
Aos fãs do cinema de terror, O Rebanho fomenta a importante reflexão sobre a incorporação de ferramentas do cinema de gênero por produções independentes, concebidas para festivais de cinema. Desde a chegada da A24 ao cenário mundial, o público tem descoberto a possibilidade de um horror belíssimo, mas também polido, recusando a carnificina e as vísceras do filme B. A qualidade de A Bruxa (2015) e O Farol (2019) logo cedeu espaço a projetos tão requintados que terminam por assepsiar o potencial extremo do cinema de horror – caso de Midsommar: O Mal Não Espera a Noite (2019). Resta o medo de que este cinema de autor tão talentoso quanto vaidoso deixe de tirar vantagem das liberdades (estéticas, morais, narrativas) fornecidas pelo horror, passando em contrapartida a domesticá-lo enquanto forma adulta e socialmente aceitável da perversidade no cinema. Ora, onde se estabelece o limite entre o gesto autoral que serve à história e o exercício egocêntrico de um jovem diretor, ansioso por alguma recompensa em Cannes? O que estes arroubos de sofisticação nos dizem sobre o imaginário popular do cinema de terror, precisando ser limpado de arestas e “excessos”? Por fim, a experiência impressiona, porém talvez o faça pelos motivos errados. O Rebanho e Midsommar constituem exemplos de um movimento que, ao sublinhar cada vez mais seus traços, caminha rapidamente ao esgotamento.
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Excelente e precisa análise crítica!