float(4) float(1) float(4)

Crítica


5

Leitores


1 voto 8

Onde Assistir

Sinopse

Lenda da comédia italiana, Eduardo Scarpetta decide encenar uma paródia de "La figlia di Iorio", tragédia escrita pelo maior poeta italiano da época, Gabriele D’Annunzio. Scarpetta acaba sendo processado por plágio.
 

Crítica

Uma das questões sugeridas em O Rei do Riso é: quem determina a arte? A indagação acontece em meio ao resgate de uma fração da vida do ator e dramaturgo napolitano Eduardo Scarpetta (interpretado por Toni Servillo nessa cinebiografia). Especialista num teatro cômico-popular, ele lotava teatros, mas não conseguia o mesmo respaldo diante da elite intelectual de sua época. E o longa-metragem selecionado para a 8 ½ Festa do Cinema Italiano 2022 poderia mergulhar bem mais fundo nessa dicotomia interessantíssima, mas prefere a isso desenhar um retrato amplo. Os primeiros momentos da trama são como indícios vitais do modus operandi do protagonista, vide o trânsito pelos bastidores de uma de suas peças mais famosas. Aos poucos, percebemos que o teatro é algo tão íntimo para Eduardo que ele emprega boa parte de sua extensa família, inclusive tratando de pavimentar o caminho para o primogênito substituí-lo no futuro. Aliás, é uma pena que esse desejo paterno que esbarra nas expectativas diferentes do herdeiro não renda mais do que um par de cenas em que o conflito ameaça causar uma turbulência. O interesse do roteiro assinado por Mario Martone e Ippolita Di Majo repousa sobre o homem que sofreu duro golpe depois de demonstrar reverência a um colega considerado sério pelos especialistas. O problema está no modo acelerado/superficial como registra as crises.

O Rei do Riso cai numa armadilha comum às cinebiografias: tenta abraçar muitos aspectos, ou seja, fazer uma força danada para o "essencial" não nos escapar. E, talvez, fosse mais bem-sucedido se, em função de uma síntese, as ações bastassem e não fossem esmiuçadas (reiteradas) em conversas que soam como artifícios meramente expositivos. Eduardo era um homem apaixonado pela nobre arte de representar, um daqueles personagens que convocam imediatamente a nossa atenção e simpatia, pela forma incondicional de viver suas paixões. No entanto, no plano pessoal, há uma série de controvérsias nessa trajetória, como os diversos filhos bastardos que, mesmo mantidos próximos e alvos de carinho, eram obrigados a chama-lo de tio. O longa se equilibra de maneira oscilante entre a observação dos desconfortos domésticos que rodeiam o sujeito sem problemas financeiros e a forma como ele enreda os imediatamente próximos em seus projetos e anseios pessoais. Toni Servillo confere complexidade a Eduardo, sendo o grande responsável para que essa figura não descambe desnecessariamente ao timbre da caricatura. É nas sutilezas, nos vacilos, nos sorrisos contaminados por uma melancolia impedida de vir à tona que podemos testemunhar o trabalho excepcional de composição desse que é um dos principais atores da Itália. Pode-se dizer que sem ele tudo seria ainda mais comum.

Disputando atenção com as demandas de cada coadjuvante (e são muitos), há a questão citada no primeiro parágrafo, que se impõe quando Eduardo recebe a rasteira do colega que descumpriu a promessa de autorizar a montagem de uma paródia. Porém, nem ao deflagrar essa briga que vai aos tribunais Mario Martone se decide por um viés no qual apostar. Continuamos a ver os problemas domésticos do sujeito que está se deparando com uma concepção elitista de arte – segundo a qual a adesão popular nada significaria, pois não conteria critérios "sérios". Há muitas repetições quando a atenção se desloca momentaneamente para uma das amantes consideradas “aceitáveis” nessa família de artista ou mesmo aos filhos bastardos que nutrem admiração obediente pelo pai que não os reconhece publicamente. É como se o roteiro fizesse questão de repetir determinadas dinâmicas e circunstâncias para o espectador não correr o risco de perdê-las de vista. De certo ponto em diante, a rebeldia do mais velho é soterrada pelas demandas dos irmãos, a inadequação do caçula se torna uma nota de rodapé com importância pontual e os sentimentos da ex-funcionária novamente grávida são diluídos nos encontros fogosos com o bufão Eduardo. Mesmo optando pelo recorte que não prevê enxergar toda a vida do biografado, o realizador ainda assim abraça temas, subtemas e gente demais.

Há, evidentemente, relação entre a família de Eduardo e outras pouco ou nada convencionais do cinema italiano – e a família é uma verdadeira instituição dessa cinematografia. Por exemplo, pode-se fazer uma relação (ainda que distante) com a turma de Feios, Sujos e Malvados (1976). Mas, enquanto no filme de Ettore Scola o patriarca nada mais é do que um satélite em torno do qual orbitam personagens e situações sórdidas, aqui os coadjuvantes valem apenas o quanto pesam diante do protagonista, assim não tendo utilidade sem funcionar como espelhos que revelam aspectos do patriarca com arroubos de grandeza. Em vários sentidos, Eduardo Scarpetta é semelhante a P. T. Barnum – personagem interpretado por Hugh Jackman em O Rei do Show (2017). Ambos obtêm sucesso do público e são tratados como criadores menores pelos pares alinhados a uma ideia mais restrita de “qualidade”. Em escalas distintas, os dois almejavam ser reconhecidos como artista e/ou como showman, nisso esbarrando no antagonismo falso entre popular e erudito. Uma pena que O Rei do Riso encare essa tensão apenas como mais um elemento, o equivalendo às demais dificuldades impostas ao protagonista. Contudo, a composição excelente de Toni Servillo compensa em certa medida essas simetrias tortas e a dispersão do roteiro. Nada como um grande ator para conferir brilho a uma abordagem vacilante.

Filme assistido durante a 8½ Festa do Cinema Italiano, em julho de 2022

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *