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Uma das questões sugeridas em O Rei do Riso é: quem determina a arte? A indagação acontece em meio ao resgate de uma fração da vida do ator e dramaturgo napolitano Eduardo Scarpetta (interpretado por Toni Servillo nessa cinebiografia). Especialista num teatro cômico-popular, ele lotava teatros, mas não conseguia o mesmo respaldo diante da elite intelectual de sua época. E o longa-metragem selecionado para a 8 ½ Festa do Cinema Italiano 2022 poderia mergulhar bem mais fundo nessa dicotomia interessantíssima, mas prefere a isso desenhar um retrato amplo. Os primeiros momentos da trama são como indícios vitais do modus operandi do protagonista, vide o trânsito pelos bastidores de uma de suas peças mais famosas. Aos poucos, percebemos que o teatro é algo tão íntimo para Eduardo que ele emprega boa parte de sua extensa família, inclusive tratando de pavimentar o caminho para o primogênito substituí-lo no futuro. Aliás, é uma pena que esse desejo paterno que esbarra nas expectativas diferentes do herdeiro não renda mais do que um par de cenas em que o conflito ameaça causar uma turbulência. O interesse do roteiro assinado por Mario Martone e Ippolita Di Majo repousa sobre o homem que sofreu duro golpe depois de demonstrar reverência a um colega considerado sério pelos especialistas. O problema está no modo acelerado/superficial como registra as crises.
O Rei do Riso cai numa armadilha comum às cinebiografias: tenta abraçar muitos aspectos, ou seja, fazer uma força danada para o "essencial" não nos escapar. E, talvez, fosse mais bem-sucedido se, em função de uma síntese, as ações bastassem e não fossem esmiuçadas (reiteradas) em conversas que soam como artifícios meramente expositivos. Eduardo era um homem apaixonado pela nobre arte de representar, um daqueles personagens que convocam imediatamente a nossa atenção e simpatia, pela forma incondicional de viver suas paixões. No entanto, no plano pessoal, há uma série de controvérsias nessa trajetória, como os diversos filhos bastardos que, mesmo mantidos próximos e alvos de carinho, eram obrigados a chama-lo de tio. O longa se equilibra de maneira oscilante entre a observação dos desconfortos domésticos que rodeiam o sujeito sem problemas financeiros e a forma como ele enreda os imediatamente próximos em seus projetos e anseios pessoais. Toni Servillo confere complexidade a Eduardo, sendo o grande responsável para que essa figura não descambe desnecessariamente ao timbre da caricatura. É nas sutilezas, nos vacilos, nos sorrisos contaminados por uma melancolia impedida de vir à tona que podemos testemunhar o trabalho excepcional de composição desse que é um dos principais atores da Itália. Pode-se dizer que sem ele tudo seria ainda mais comum.
Disputando atenção com as demandas de cada coadjuvante (e são muitos), há a questão citada no primeiro parágrafo, que se impõe quando Eduardo recebe a rasteira do colega que descumpriu a promessa de autorizar a montagem de uma paródia. Porém, nem ao deflagrar essa briga que vai aos tribunais Mario Martone se decide por um viés no qual apostar. Continuamos a ver os problemas domésticos do sujeito que está se deparando com uma concepção elitista de arte – segundo a qual a adesão popular nada significaria, pois não conteria critérios "sérios". Há muitas repetições quando a atenção se desloca momentaneamente para uma das amantes consideradas “aceitáveis” nessa família de artista ou mesmo aos filhos bastardos que nutrem admiração obediente pelo pai que não os reconhece publicamente. É como se o roteiro fizesse questão de repetir determinadas dinâmicas e circunstâncias para o espectador não correr o risco de perdê-las de vista. De certo ponto em diante, a rebeldia do mais velho é soterrada pelas demandas dos irmãos, a inadequação do caçula se torna uma nota de rodapé com importância pontual e os sentimentos da ex-funcionária novamente grávida são diluídos nos encontros fogosos com o bufão Eduardo. Mesmo optando pelo recorte que não prevê enxergar toda a vida do biografado, o realizador ainda assim abraça temas, subtemas e gente demais.
Há, evidentemente, relação entre a família de Eduardo e outras pouco ou nada convencionais do cinema italiano – e a família é uma verdadeira instituição dessa cinematografia. Por exemplo, pode-se fazer uma relação (ainda que distante) com a turma de Feios, Sujos e Malvados (1976). Mas, enquanto no filme de Ettore Scola o patriarca nada mais é do que um satélite em torno do qual orbitam personagens e situações sórdidas, aqui os coadjuvantes valem apenas o quanto pesam diante do protagonista, assim não tendo utilidade sem funcionar como espelhos que revelam aspectos do patriarca com arroubos de grandeza. Em vários sentidos, Eduardo Scarpetta é semelhante a P. T. Barnum – personagem interpretado por Hugh Jackman em O Rei do Show (2017). Ambos obtêm sucesso do público e são tratados como criadores menores pelos pares alinhados a uma ideia mais restrita de “qualidade”. Em escalas distintas, os dois almejavam ser reconhecidos como artista e/ou como showman, nisso esbarrando no antagonismo falso entre popular e erudito. Uma pena que O Rei do Riso encare essa tensão apenas como mais um elemento, o equivalendo às demais dificuldades impostas ao protagonista. Contudo, a composição excelente de Toni Servillo compensa em certa medida essas simetrias tortas e a dispersão do roteiro. Nada como um grande ator para conferir brilho a uma abordagem vacilante.
Filme assistido durante a 8½ Festa do Cinema Italiano, em julho de 2022
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