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Crítica


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Sinopse

Figuras centrais das revoluções no Irã e na Polônia, respectivamente em 1979 e 1980, os jovens foram realmente protagonistas desses dois momentos ímpares. O que se passava em suas cabeças naqueles momentos?

Crítica

Irã, 1978. Uma manifestação popular sem precedentes consegue retirar do poder o Xá, rei local. Seria mais um golpe de Estado financiado por uma potência ocidental, após os fatos de 1953, ou apenas uma articulação do povo? Polônia, 1980. Operários explorados em suas fábricas se reúnem e lutam pelo direito à greve e ao reconhecimento das organizações sindicais. A princípio, estes dois momentos teriam pouco em comum: o primeiro envolve o imperialismo dentro de um regime onde não existe qualquer separação entre Estado e religião, já o segundo representaria uma estruturação coletiva de trabalhadores contra a exploração do empresariado. Ora, o diretor Andreas Hoessli estabelece inicialmente uma ponte simbólica entre ambos, através da figura de Ryszard Kapuscinski. O repórter polonês foi enviado ao Teerã durante a queda do Xá para noticiar a revolução no país distante, enquanto seu próprio país sofria uma revolução particular. Ele foi perseguido, espiado e ameaçado, da mesma maneira que os líderes trabalhistas de seu país o foram. Através deste personagem ausente das imagens, porém mencionado com frequência, o cineasta sugere a existência de mecanismos de opressão compartilhados entre os regimes mais díspares.

Além disso, O Rei Nu (2019) não demonstra interesse particular pelas condições políticas necessárias a estas transformações. O cineasta observa grandes movimentos nacionais e se interroga sobre a psicologia das revoluções: o que leva um grupo de jovens a colocar a vida em risco pelo fim de um regime, ou pela conquista inédita de direitos? Por que algumas situações de opressão geram revolta, enquanto outras não incitam levantes populares? Além disso, de que modo as revoluções terminam – tendo atingido os seus objetivos ou não? Que legitimidade possuem os grupos cujas reivindicações incluem a morte de seus oponentes? Há justificativa, dentro de um plano moral, para o assassinato de tiranos e genocidas? O filme não levanta as perguntas mais fáceis. De qualquer maneira, ele conversa com manifestantes de ontem e de hoje, tentando entender o que os motiva a protestar, através de quais estratégias, e por quanto tempo. Para uma jovem militante, as mortes de opositores não se justificam: “Eu sinto como se tivesse um gosto de sangue na boca”. Segundo um ativista experiente, caso fosse capturado por inimigos, preferiria ser morto a ser solto, porque daria a impressão de ter entregado informações sigilosas em nome de sua soltura. “Tenho medo de ser descrito por algo que não sou”. A honra, o medo, a coragem e a indignação se misturam em proporções desequilibradas.

Os melhores instantes do documentário se encontram nas reflexões metalinguísticas. Hoessli assume o olhar estrangeiro em relação ao Irã, e admite seus julgamentos morais em relação às pessoas filmadas. Quando encontra jovens ativistas iranianos defendendo a “morte aos Estados Unidos” e “morte a Israel”, confessa a raiva contra o grupo. Ele aproxima sua câmera e encara os manifestantes durante um tempo excessivo, passando do registro naturalista ao ato de encarar, medir forças, até provocar o incômodo da pessoa filmada. O dispositivo cinematográfico torna-se uma arma: diante dos adolescentes com instintos guerreiros, a resposta do cineasta consiste em intimidá-los pela presença invasiva da imagem em seus rostos. O tempo adquire um papel fundamental: vemos os jovens, compreendemos o seu discurso, mas a insistência de capturar suas brincadeiras nos convida igualmente ao posicionamento político em relação aos ativistas ou à postura agressiva do cineasta. Não há qualquer forma de apatia ou frieza nesta exposição histórica: as imagens são fortemente conotadas, e assumidas enquanto tais.

A estética do projeto como um todo chama bastante atenção. O documentário possui uma cuidadosa construção de ambientações, incluindo diversos planos noturnos de cidades vazias, reflexos de passantes anônimos pelas vitrines das lojas, trilha sonora estilo jazz-bar permanente, e sobretudo a narração aveludada e maneirista de Sam Riley. Cria-se um estilo de torpor, semelhante aos suspenses noir de 70-80 anos atrás, o que serve a ficcionalizar a história. Embora se possa admirar a qualidade da fotografia, seja pela iluminação impecável das entrevistas, seja pelo material de arquivo deslumbrante ou pelas poesias urbanas, silenciosas e muitíssimo bem enquadradas e montadas, elas poderiam ser acusadas de estetização excessiva, ou seja, de uma vaidade autoral capaz de distrair o espectador da temática política ao invés de reforçá-la. Mesmo a entrada dos entrevistados em cena possui uma controlada coreografia: Parviz Rafie surge pela primeira vez do fundo de uma galeria comercial, caminhando entre diversos clientes até se aproximar da câmera, parar num ponto exato e observar fixamente a câmera. Mais do que ensaiado, o gesto resulta posado, como num ensaio fotográfico, um curioso “desfile” político.

A vontade de triangular o discurso com sua própria experiência – Hoessli descreve a si próprio enquanto ativista contemporâneo, investigando de que maneira as perseguições que sofre seriam equivalentes àquelas de 40 anos atrás – faz com que a discussão bastante ampla (no eixo Polônia – Irã) se torne ainda mais abrangente. Este é um projeto extremamente ambicioso, para bem ou para mal. Resta saber se ele atinge os objetivos ou sucumbe à responsabilidade autoimposta de representar pelo menos dois países, em contextos distintos, mesclando psicologia, sociologia, política e História, em múltiplas línguas, enquanto investe nas ferramentas estéticas do suspense de investigação. Outro fator merece destaque neste projeto: o teor da narração. Embora Riley adote o já mencionado estilo sedutor-vaporoso de fala, ele interpreta um texto fascinante. Para cada informação histórica acerca de lugares, datas e pessoas, há outra indagação sem resposta, espécie de provocação filosófica lançada ao espectador. A maioria das frases deste narrador se conclui em perguntas retóricas atiradas ao ar, solicitando nossa atenção à articulação proposta.

O documentário adquire o caráter de meditação política, algo bastante interessante em comparação com a estrutura majoritária dos projetos militantes. Ao invés de nos dizer quem odiar e quem admirar (como em Silêncio de Rádio, 2019), ou de revelar algum segredo espetacular por trás dos documentos oficiais (a exemplo de Golpe 53, 2019), o discurso não nos fornece, a priori, nenhuma informação nova. Ele prefere convidar a um olhar crítico pela aproximação entre passagens históricas desconectadas à primeira vista. O Rei Nu está repleto de metáforas mais ou menos enigmáticas, visando diluir qualquer perspectiva didática do documento. A abertura, com mulheres iranianas observando a câmera; a cena da manifestação, quando Hoessli questiona os próprios motivos de filmar longamente o único ativista de aparência morosa em meio à multidão; a anedota sobre o homem sem dedo e sem voz; e sobretudo o conto do bebê que fala, na conclusão, propõem uma imersão por meio de enigmas ao invés de esclarecimentos. Talvez estas articulações soem vagas demais a parte do público. No entanto, representam uma proposta ambiciosa de se apropriar da História e das ferramentas do documentário.

Filme visto online no 25º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, em outubro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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