Crítica


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Sinopse

O militar Brad Paxton retorna aos Estados Unidos como um herói de guerra, após salvar colegas durante a invasão à Síria. Ele ainda sofre com os traumas do confronto, quando sua esposa, uma arqueóloga famosa, é sequestrada por terroristas entre o Marrocos e a Argélia. Brad precisa retornar à África para salvá-la.

Crítica

Imagine um filme onde um estrangeiro chega ao Brasil pela primeira vez. Ele observa as praias maravilhosas do Rio de Janeiro, as mulheres seminuas, e decide escutar uma roda de samba. No minuto em que põe os pés fora da Zona Sul, é sequestrado por traficantes negros e levado ao morro, onde sofre torturas enquanto testemunha a venda ilegal de armas e drogas. Este retrato estereotipado enfureceria parte considerável do público brasileiro caso fosse produzido atualmente (e já foi feito algumas vezes no passado recente). Ele corresponderia ao olhar estrangeiro para exportação, promovendo uma caricatura do país tanto no seu melhor (as paisagens) quanto no pior (o crime). O Resgate: O Dia da Redenção (2021) aplica este ponto de vista ao Marrocos, com um detalhe importante: embora se trate de uma produção norte-americana, ela foi elaborada por um cineasta marroquino, Hicham Hajji. Ou seja, ele possui plena consciência da complexidade de seu país. Entretanto, prefere apelar ao imaginário coletivo das dunas a perder de vista e dos terroristas sanguinários pelo deserto. A experiência se assemelha àquela de assistir ao filme fictício descrito acima, sobre o “Brasil selvagem”, pelas mãos de um cineasta brasileiro.

O roteiro segue à risca a trajetória do herói norte-americano. Ele é forte, destemido, incorruptível, pai amoroso, marido gentil e militar condecorado, cuja esposa é sequestrada assim que chega à fronteira entre Marrocos e Argélia. Brad (Gary Dourdan) veste a camisa e pega o primeiro voo para combater os poderosos terroristas, desmantelar com os próprios punhos um núcleo do extremismo global, solucionar o dilema de ordem mundial e resgatar a mocinha indefesa. Este tipo de posicionamento à moda antiga (o americano salvador, o árabe malvado, a mulher ingênua e chorosa, o homem sozinho-contra-todos) transmite um curioso senso de potência e virilidade: o herói precisa ser musculoso, bruto, sexualizado (a esposa está grávida), e corajoso a ponto de resolver o problema que nenhum serviços de inteligência do mundo solucionou até então. Nestas produções, o homem onipotente e onipresente se assemelha a um deus vigoroso para quem a reflexão implica em fraqueza: basta pegar em armas e atirar a esmo para garantir a paz. Não é preciso ter visto muitas produções de ação dos anos 1980 e 1990 para saber qual lado prevalecerá, e qual fim terá o casal formado por marido ativo e esposa passiva. Sabendo que o cinema contemporâneo já propôs diversas maneiras de romper com essa xenofobia, ou pelo menos ridicularizá-la (caso de John Wick 3: Parabellum, 2019), a iniciativa de 2021 soa ainda mais anacrônica.

Em termos de história, geografia, política externa, diplomacia, arqueologia, sociologia, tecnologia e estratégia militar, O Resgate: O Dia da Redenção é catastrófico. Ao invés de manter a trama simples, o roteirista Sam Chouia investe em subtramas absurdas: Kate Paxton (Serinda Swan) faz a descoberta mais importante da humanidade e viaja para analisar os indícios da primeira comunidade da história sozinha, a pé, sem uma equipe americana, nem computadores, cálculos, gráficos ou mapas. Ela apenas passeia pelo deserto, esperando para ser abduzida. Seu marido, o herói condecorado, revive em pesadelos uma única cena de tiroteio que busca ser apoteótica, porém se revela pequena demais para tal efeito. O embaixador Earl Williams (Andy Garcia) surge como peça importante na articulação entre os dois países, sugerindo possível corrupção de ambos os lados, até ser esquecido pelo roteiro, indeciso sobre o que fazer com o personagem ao longo da trama (até a cena final, estranhíssima, com um personagem de costas por tempo injustificável). O filme demonstra dificuldades de trabalhar o enquanto isso: o que estaria fazendo o governo americano durante o calvário de Kate na prisão? O que Brad pensa em pleno voo rumo ao Marrocos? As respostas são ignoradas. O militar ouve falar do sequestro e – corte da montagem – se encontra no continente vizinho. O tempo não passa nesta trama que, ironicamente, aborda a urgência de um resgate.

Os aspectos técnicos tampouco ajudam. Após a ambiciosa abertura com um longuíssimo plano-sequência em câmera na mão, Hajji privilegia a romantização de ordem televisiva. A chegada de Kate ao Marrocos é instantaneamente acompanhada de trilha sonora local, belos raios de sol e paisagens maravilhosas. Ao final de cada cena, surge um stablishing shot (em geral, um plano aéreo), resultando em pelo menos uma dúzia de imagens genéricas do deserto, acompanhadas de letreiros risíveis do tipo “Núcleo dos terroristas” e “Perto da fronteira”. Os diálogos constituem pérolas das frases de efeito: o militar vai salvar a esposa ameaçada de morte, e lança a bravata “Ora, ora, ora. Vamos começar esta festa!”, sendo encorajado a partir o quanto antes: “Crianças estão morrendo enquanto conversamos!”, embora nenhuma criança seja vista ou resgatada na história. Para descobrirmos o grau de parentesco entre Ed (Ernie Hudson) e o protagonista, o primeiro dispara uma sutil referência: “Escute, filho, eu sou o seu pai”. O tom se encontra tão próximo da paródia dos filmes de guerra que poderia facilmente mergulhar na ironia dos chavões e moralismos deste tipo de empreitada. Entretanto, o autor acredita estar desenvolvendo uma reflexão séria – vide a improvável deixa para uma sequência.

Os melhores momentos surgem da atuação comprometida, até demais, de Serinda Swan, trazendo louvável humanidade à mocinha em perigo – inclusive na questionável cena de estupro, com direito a plano de detalhe na altura da virilha com as calças sendo arrancadas. O experiente Andy Garcia é quem mais se diverte. Ele parece ter sido o único a perceber a superficialidade da narrativa, optando por uma composição grosseira, apostando em frases maliciosas, charuto, suspensórios e gravata borboleta. O ator não acredita um segundo sequer nas falas que profere, tornando suas cenas as mais leves da projeção, como um aceno ao público: “Eu sei que nada disso faz sentido. Vamos nos divertir”. Gary Dourdan possui evidentes limitações dramáticas, sendo incapaz de superar a simplicidade do personagem, além de construir uma dinâmica nula com o parceiro Younes (Brice Bexter). Já a presidência dos Estados Unidos entregue a Jay Footlik se assemelha a uma piada. Obviamente, nenhum filme é obrigado a traçar um panorama sociopolítico complexo, e a ficção permite reformulações da realidade. No entanto, a partir do momento em que se aborda grupos reais e conflitos graves (o terrorismo, a invasão aos países árabes), resta uma responsabilidade ética a observar. É inaceitável que países da África e Oriente Médio ainda sejam representados como subcivilizações exploradas para se reafirmar a supremacia norte-americana sobre o mundo.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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