Crítica
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Sinopse
Laosan passa o tempo inteiro fumando ópio. Para sua comunidade e família, no coração da selva do Laos, esse plantio é a única maneira de sobreviver. Mas também é o veneno que entorpece os homens e destrói seus desejos.
Crítica
As primeiras imagens deste documentário podem parecer chocantes aos olhos ocidentais: um jovem adulto fuma ópio deitado na cama, ao lado dos dois filhos pequenos, que ficam submersos pela fumaça. A esposa, enquanto amamenta outra criança, tem os olhos perdidos à medida que a nuvem de ópio cobre o ambiente, inclusive o bebê. Ao invés de inserir imediatamente estas imagens num contexto, o diretor Nicolas Graux prefere estabelecer metáforas visuais (a fumaça branca se mistura com o dia nublado), além de uma rotina marcada pela observação atenta, porém não intrusiva daquela família de agricultores do Laos. A câmera se encontra muito próxima dos personagens, no entanto, eles estão tão absortos em seus pensamentos e nos efeitos da droga que não parecem se incomodar.
Segundo a lenda local, o ópio seria o néctar de uma flor mágica, nascida do peito de uma mulher nobre e triste. Esta seiva permitiria às pessoas relaxar e esquecer tanto as dores quanto os amores não correspondidos – nas palavras de um personagem, ela permitiria a “libertação dos desejos”. Assim, a vida desta família produtora de ópio tem na substância sua salvação e sua perdição: por um lado, esta é a única fonte de renda possível naquele povoado, por outro lado, mantém quase todos os homens do vilarejo em vício constante, que os impede de trabalhar de modo eficaz e cuidar da esposa e dos filhos. Ao observar uma única família, considerada representativa das demais, o projeto busca ilustrar o impasse dentro de um país em desenvolvimento que planeja banir a produção da droga, enquanto mantém uma rígida estrutura patriarcal, relegando aos homens todo o poder de decisão dentro de casa.
As escolhas estéticas são responsáveis por parte considerável do impacto emocional e discursivo do filme. Seria fácil, diante dos casebres paupérrimos, reforçar a miséria dessas pessoas em chave de denúncia, assim como se poderia fetichizar a natureza, a aparência de liberdade, a doce viagem proporcionada pelo ópio. Ora, Graux encontra uma excelente forma de escapar às duas armadilhas. A plasticidade rigorosa dos enquadramentos evita qualquer prazer documental de apreensão do ambiente (seja ela para ressaltar sua beleza ou feiura), enquanto propõe uma construção própria, de natureza representativa: a câmera se posiciona em ângulos improváveis, enquadrando as pessoas em meio aos móveis ou às plantas, proporcionando imagens que nenhum passante enxergaria in loco, em estado bruto. Enquanto isso, os depoimentos são despidos do caráter didático: o homem viciado fala sobre a sua vida deitado na cama, olhando para o horizonte, enquanto a esposa descontente parece reclamar para si mesma, sem finalidade precisa, e sem observar a câmera.
Isso significa que cada enquadramento apresenta diferentes ações acontecendo no primeiro plano e ao fundo, enquanto o som destaca uma conversa distante, sobreposta ao silêncio do personagem mais próximo das câmeras. Existe uma riqueza notável na construção das cenas, fruto de uma direção capaz de admirar aquele ambiente sem se tornar refém dele - afinal, cada plano parece cuidadosamente escolhido e composto pelo diretor, que demonstra controle estético excepcional para um documentário. A direção de fotografia favorece o sentimento de solidão ao reforçar o contraste de luz e sombra dentro do casebre, enquanto o som capta tanto a riqueza de ruídos quanto o silêncio que afeta psicologicamente estes personagens. As escolhas estéticas nunca se reduzem a um exibicionismo da direção, procurando encontrar a forma mais adequada àquele mundo de inércia.
Deste modo, O Século da Fumaça retrata uma comunidade condenada ao desaparecimento, seja pela autodestruição (o vício do ópio destruindo a saúde e rompendo estruturas familiares), seja pela destruição externa, do governo, com a proibição iminente. O protagonista inclusive torce para que a proibição venha de fora, porque teme não ter forças suficientes para largar o vício. Ao final, este se mostra um retrato melancólico de uma situação econômica e social inviável: por um lado, a estrutura patriarcal não permite nem a liberdade dos homens (o protagonista se casou por obrigação familiar), e muito menos das mulheres (elas não podem sair da cidade sem a autorização do marido, nem mesmo cogitam o divórcio).
Uma mãe pensa constantemente no suicídio, mas não passa à prática por medo de deixar os filhos sozinhos. “Não tenho ninguém com quem conversar durante o almoço”, ela explica, enquanto o marido viciado se posiciona, absorto, ao fundo. Groux registra uma situação de urgência, porém sem a visceralidade esperada das causas graves: trata-se, no caso, de uma configuração crônica, imutável há gerações, e sem perspectivas de transformação. O filme consegue retratar pela estética o ritmo lento, ainda que visualmente deslumbrante, desta vida “liberada dos desejos” por meio da droga. Afinal, os protagonistas de fato abandonaram qualquer desejo de mudança, de fuga, de felicidade. Estão mergulhados, voluntária ou involuntariamente, num torpor de drogas e melancolia.
Filme visto na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2019.
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