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Sinopse

Num Brasil alternativo, onde o porte de armas foi liberado e a ação das milícias é cada vez maior, um homem decide se alistar nas forças militares para ter condições de proteger sua esposa e filha. O que ele não imaginava era a guerra que começaria no seio da própria família.

Crítica

A princípio, este drama embarca numa análise sociológica ampla a respeito da ameaça do fascismo representada pela liberação do porte de armas. No primeiro quarto da história, diversos comércios são assaltados, pessoas desfilam suas metralhadoras pelas ruas, trabalhadores de baixa renda emprestam revólveres aos colegas. Um letreiro didático e simples explica a mudança de lei permitindo a compra desenfreada de pistolas e outros armamentos — com exceção de algumas cidades no interior, como Sumaré, em São Paulo, para onde se mudam os heróis. Prepara-se o terreno a certos questionamentos que jamais serão desenvolvidos: a distinção entre a metrópole e o interior; o contexto socioeconômico que permitiu a adoção de tais medidas; os responsáveis por aprová-las ou implementá-las; o estranhamento dos indivíduos diante do novo universo armado. Ora, a narrativa se inicia num momento em que esta realidade foi normalizada pelos habitantes, e não parece surpreender ninguém. Atira-se por todos os lados, mas ninguém é responsabilizado pelos disparos. O projeto se anuncia como uma distopia, ainda que guarde mais semelhanças com os faroestes clássicos, com seus saloons e duelos ao pôr do sol. As desavenças, neste caso, se resolvem na base da força. Não há polícia para intervir, ao menos nesta parte inicial.

Aos poucos, o espectador pode até se esquecer do realismo fantástico, visto que o roteiro decide se focar apenas na família formada por Miro (Anderson Di Rizzi) e Solange (Lucy Ramos). Ela, vítima de violência num passado recente, rejeita a presença de revólveres em casa. Ele, vendo sua masculinidade contestada, e precisando garantir a segurança da prole, se transforma num sujeito progressivamente fascinado pelas milícias. Os comércios assaltados e a troca de balas nas ruas são deixados de lado: a direção considera a situação bem estabelecida, e segue adiante. O espectador mergulha então num drama clássico de oposições entre o pacifismo e o belicismo; entre o homem tradicionalista e a esposa progressista, professora de artes; entre o sujeito branco privilegiado e a esposa negra. A cidade em que se encontram, fator essencial na introdução, se converte num elemento secundário. O olhar da direção parte de um retrato macroestrutural para o estudo de caso de personagens excepcionais, que não representam a média da comunidade ao redor. Saímos da sociologia para a psicologia, conforme Miro ingressa na Legião Estrangeira e se descobre forte, competitivo, propenso a atirar. Mas o projeto estaria criticando esta brutalização do homem contemporâneo no Brasil de Bolsonaro, que coloca armas na mão de crianças e defende esta masculinidade vingativa? Ou seria mera constatação da existência do fenômeno?

O Segundo Homem (2021) encontra seu principal problema na falta de um ponto de vista definido. Inicialmente, o olhar aparenta se colar a Miro, porém logo a câmera mergulha por outras perspectivas, esquecendo o combatente em dois instantes fundamentais, ocultados por longos blacks (com aparência de erros de montagem). O filme às vezes se aproxima de Solange, entretanto, também a esquece quando conveniente (a cena do rodeio). Em fase avançada da trama, duas policiais (Negra Li e Cléo) ameaçam roubar o protagonismo, embora a narrativa tampouco se cole às duas a ponto de a conhecermos fora do ambiente de trabalho. A cena inicial sugeria um ponto de vista onisciente, através do qual o espectador saberia o que todos os personagens fazem, ao mesmo tempo. Em contrapartida, esse registro se interrompe principalmente no black do rodeio e em outras elipses, quando a verdade é escondida do espectador. Não enxergamos o mundo pelos olhos de Miro, nem de Solange, das policiais, e muito menos da filha pequena, reduzida à função de chantagem emocional, e desprovida de personalidade própria. A direção ora se atenta à mente dessas pessoas transtornadas, com planos de detalhe procurando penetrar os olhos do homem; ora deixa o interlocutor num silêncio total. Há um curto-circuito na espectatorialidade — uma indefinição conceitual grave na condução desta jornada.

Em consequência, a postura política se torna ambígua. Por um lado, o cineasta Thiago Luciano parece criticar a truculência destes indivíduos e a justiça com as próprias mãos. Por outro lado, faz o possível para transformar a violência e a agressividade em algo esteticamente excitante. O treinamento de Miro na Legião Estrangeira é carregado de intensa trilha sonora operística, imagens dos corpos musculosos sob a forte chuva e uma luz de lâmpadas que eleva os homens à condição de heróis. Um cadáver encontrado na floresta é filmado em longo plano de detalhe da mão, enquanto a montagem insere um sem-número de símbolos de tensão: a carne fritando na frigideira, o pino da panela de pressão apitando, um boi agitado em câmera lenta, a cor azulada de um quintal assustador. Além de excessivos e evidentes em sua intenção, estes recursos glamorizaram a violência supostamente denunciada pela obra. Quando se busca repudiar a agressão, é comum adotar ferramentas de linguagem capazes de provocar o distanciamento: o exagero cômico ou grotesco (caso de Tarantino, por exemplo), a frieza excessiva (Michael Haneke), a abertura ao fantástico (Jordan Peele), a inversão moral dos protagonistas testando nossa adesão (Lars von Trier em Dogville). Ora, o filme brasileiro adere às ferramentas clássicas das grandes produções norte-americanas, que terminam por valorizar o heroísmo de Miro (mesmo no final, quando apenas ajuda um colega) e colocar uma arma na mão da mulher pacifista como forma de empoderá-la. Paira uma amarga ambiguidade ideológica nesta construção.

Além disso, a produção sofre com outras deficiências de ordem cinematográficas, ao invés de política. O roteiro nunca sabe ao certo o que fazer com a viagem de Miro à França: este trecho é acelerado demais, isento de conflitos, problemático na captação digital de baixa qualidade, e abrupto, visto que se encerra sem dizer a que veio. A vontade de inserir planos-sequência empolgantes se confronta à dificuldade de estabilização do dispositivo — a cena de abertura, por exemplo, traz uma câmera trepidante e pouco fluida. As elipses apresentam problemas: o pai de família adere com rapidez excessiva ao pensamento belicista, e sua ascensão entre os soldados ocorre por milagre (ele treina pouco tempo sobre um pequeno gramado, antes de receber o bilhete do voo internacional). As câmeras na mão, tremidas e oscilantes, se juntam à trilha sonora grandiloquente para atingirem um arsenal sufocante. Luciano poderia ter confiado na capacidade da excelente Lucy Ramos em transmitir a incerteza da esposa, ou na versátil Cléo para transmitir as dúvidas na investigação. Ora, os ornamentos e artifícios diminuem o trabalho do elenco. Isso inclui as televisões e rádios que, convenientemente, transmitem apenas informações de que o espectador precisa, e a imagem destas mulheres mascando chiclete de boca aberta para parecerem fortes. Por fim, os tiques e truques se sobrepõem à discussão distópica. Ressente-se a presença de uma produção de pulso firme, capaz de conferir um direcionamento único à obra, e garantir a coesão das escolhas estéticas e políticas da direção.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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